Fila

Depois de um ano, veio outro. Dois mil e tantos. Num desses, num povoado, Alex puxou a fila. Corriam de chinelo. A intenção, de chegar o quanto antes, era comum. Cansou. Ultrapassado por um, continuou. Acreditava. Veio o segundo. Relaxou depois que o terceiro, pela esquerda, deixou pra trás. Desistiu. Baixou a bola e a obstinação, verdadeira, virou descanso. Perdeu pra muita gente. Foi o quadragésimo. Bebeu água, tomou banho e se despediu. Chegou sem graça em casa. Derrotado. Na dúvida, cancelou o treino. Talvez pare de correr.

Significado

Pensa enquanto espera. No que houve. No que esqueceu, no significado e no resultado. No que pode fazer. Esqueceu. Nunca pensou. Agora que passou, reflete. Teria esperado, sofrido e feito o que, dessa vez, não fez. Não lembrou. Cabeça cheia. Caos. Assaltos, mortes e invasões. Hospitais. Colégios vazios. Parou um pouco. Daqui a pouco vai passear. Tá esperando.

Estrada

Uma entre tantas. Diferente. A formatação é a mesma, mas marca. Diz muito. Significa muito. Ruptura, condições e esperança. Bifurcação. Estrada. Tem o coração nela, exposto. Persegue. Ouviu, no fim do dia, o que disseram. Declaração gratuita de carinho. Ingênua. Emocionado, segue.

Fruta

Do lado de fora, debaixo da árvore, caiu a fruta. Doce. Madura. Junior monitorava, esperava pela queda. Proprietário da propriedade privada, dormia no momento do evento. Tava cansado. Tinha catado coco, lavado o carro e pintado a sala. Botou a rede na varanda. Deitou de tarde, depois do almoço. Prato típico. Do sono profundo, aos roncos, não acordou. Quase não fez barulho. O contato com o chão de terra destruiu o alimento. Espatifou. Desperdiçado, ficou lá. Pisaram em cima.

Barata

Pra constar, escreveu às pressas. Mensagem barata. Linguajar de sempre, conteúdo inútil e nada a acrescentar. Perda de tempo. Pra quem lê, decepção. Mistura de frases nervosas. Pouco inspiradas. Formuladas na correria, fazem sentido mas não importam. São vazias. Inexpressivas. Construídas nas coxas, ocupam espaço. Formam um todo que não faz diferença. Foram entregues.

Tropeço

Do início ao fim, flui. Não para. Pesa na raiva, descansa no colo e carinho nervoso. Silencia e volta. Até acabar, te leva. Sem tropeço. Acelera, trava e, devagar, acalma. Grita. Faz sentido. Cresce, ganha tempo e corpo. Completa. É quem, até acabar, te leva.

Pilha

Todo mundo cansado. Destruído. O desgaste, provocado pela repetição incessante, é enorme. Não passa. Acordam cansados, dormem cansados e, no intervalo, cansaço. Não aguentam mais. Não reagem. Gostariam de, amanhã, acordar melhor. Dormem de novo.

Fábrica

Não existe até, de repente, passar a existir. É fruto do sexo. Concepção, fecundação e sai completo. Boca, orelha e nariz. Pronto. Da vagina, qualquer lugar. Qualquer família. Enquanto vivo, toma atitudes. Com o cérebro de fábrica. Envolto pelo crânio de fábrica. Esqueleto e pele. Tudo de fábrica. Ninguém tem culpa. De nada.

Garupa

Não sei onde está. Não vou saber nunca. Nenhuma notícia. Da última vez, na garupa da bicicleta, olhava pra trás. Pra mim. Pra minha mãe. Naquela época, a mãe era nossa. Deixou de ser. Naquele dia. Triste, chorava. Gritava. Soluçava. Queria muito ficar. Não queria ir. Queria ficar. Queria que ficasse. Que soubesse do carinho. Do que guardo. Naquele dia, foi embora. Foi levado.

Almoço

Engravidou no fim de semana. Foda bem dada, gozada dentro e travesseiro. Dormiram e acordaram. De tarde, tomaram café. Exaltaram a véspera. Mais beijos, abraços e despedida. Já tinham o contato um do outro. Meses depois, almoço. Conversa que virou discussão que virou agressão. Nenhum soco. Nenhum chute. Um chope, gelado, na cabeça de Arnaldo. Nenhum acordo.

Pressa

Numa conversa, escuta sem querer. Não ouve. Não importa. Passa por cima e, com pressa, afirma. Repete. Interrompe questões, réplicas e comentários. Quer contar. Explicar. Criticar, reclamar e brigar. Não quer saber. Quer que pare. Que cale. Que, convencido, concorde.

Serviço

Ultravioleta, atingiu Denise. Mais de um. Barriga, pescoço e braço. Perna e bunda. Vários. Insensíveis. A pele sensível, exposta, foi castigada. Vinham aos montes. Miravam. Vibravam com a ausência da camada de proteção. Foram tantos e tão certeiros que, naquela hora, terminaram o serviço. Sintomas clássicos. Desespero. No primeiro impacto, quando viu o rosto pra ajeitar o cabelo, saiu do sol. Tarde.

Príncipe

Acha a lua feia. Pôr do sol. Cachoeira, jardim e borboleta. Príncipe e princesa. Não quer abraço. Nem beijo nem cafuné. Nada de festa. Passeio no parque. Aponta pros lados, pra trás e pra frente. Não gosta da mãe. Não gosta do pai. Ninguém. Considera o sorriso, besteira. Critica a onda, a areia e o mar. Música. Estrela e nuvem. Teatro e flor. Condena a chuva e o frio. Literatura. Calor. Reclama do cachorro. Do peixe, do pato e do resto. Do desenho. Da dança. Não gosta da vida. Nem da morte.

Produto

Queria provocar, naquele exemplar, contentamento. Pensou num presente. Num que fosse bom. Imaginou que, do jeito que é, gostaria de algo relacionado à religião. À música. Podia ser esporte também. Precisava extrair, da imagem que tem, um produto. Algo à venda. Microfone, pandeiro, cruz ou preto velho. Camisa de time. Que enxergasse, naquilo, o tanto que ama. Especial. Pessoal. Alguma coisa. Uma homenagem.

Caracol

Até o sino, escada caracol. Nove minutos e 600 degraus. Tava no 38. Subia. Nervoso, subia. Corria pra cima. De dois em dois. Se não chegasse meio-dia, cortariam a cabeça. Subia pra não morrer. Tinha saído na véspera e, ao invés de levantar na hora, acionou a soneca. Não tinha mais tempo. Subia. Degrau 328. 11h56. Era veloz. Fazia isso todo dia. Subia. Deu 11h59 e já tava no 523. Quase lá. Um minuto. Alcançou o topo e caiu no chão. O sino, doido pra tocar, deu força. Levantou. Andou, pegou na corda e balançou. Não foi dessa vez.

Extremo

Castigado pelo acaso, convive agora com o extremo oposto do que criticava. Reclamava diariamente. O comportamento atual, inverso ao qual já foi submetido, também não presta. Nenhum dos dois. Parece brincadeira. Ironia. Era veemente. Dizia que incomodava, que não devia ser assim e que não queria mais. Hoje, por algum motivo, sofre com o contrário. Oitenta do oito. Quando chiava, sonhava com o equilíbrio. Não tem. É sina. Tá fadado.

Passo

Descobriu, de repente, que tem joelho direito. Não tinha percebido. Foi num passo, numa música. Reparou, naquela hora, a presença da articulação óssea que liga a coxa à canela. Já sabia do esquerdo. Usava sempre. Agora, com outro, muda tudo. Pode fazer diferente. Movimentar.

Espécie

Pronto pra dar com a barra de ferro no crânio de um companheiro de espécie, dorme. Pra dar um tiro. Dorme atento. Num barulho, energia. Levanta e vai atrás. Anda armado. Disposto a, de imediato, atacar. Violência contra violência. Proteção. Pra não ficar de vítima, réu. Defende o espancamento alheio. Do culpado. Do criminoso. Se for o caso, extermínio. Dorme em casa. Vulnerável.

Culpa

Atenta ao chão, voa. Pra cima e pra baixo. Bate forte a asa presa ao corpo. Tem pressa, culpa e medo. Entre nuvens, viaja. Passa frio, morno e quente. Rasante. Quase morte. Enxerga, no asfalto, o fim. Escapa. Sobe. Descansa.

Alarme

Além do mais, o alicate. Tirou meu sono. Levou minha força, meu sangue e choro. Ainda caem. Tudo revirado. Papéis e roupas. TV. Do dinheiro, moedas. Alarme cortado. O barulho e a cena, o cenário, na cabeça. Invasão. Fuga pelo telhado. Tentativa, frustrada, de evitar. Vazio. Insone e incrédulo, destemido, delegacia. Desolado. Madrugada. Relato, registro e assinatura. Ironia e descaso. Procedimento padrão. Na perícia, coação. Pegou meu chocolate. Ladrão safado.

Cabeça

Só pensa. Não verbaliza. O que passa pela cabeça, sobre livros, fica guardado. Filmes e conversas. Deixa quieto o que escuta. Linhas completas de raciocínio. Opiniões formadas. Não defende, não se defende e não acusa. Quando insistem, ignora. Não quer saber. Chamam de estranho. Dizem que é mudo. Dizem que é discreto. Dizem que, por falta do que falar, silencia. Dizem isso.

Mercado

Faz aos poucos. Elabora, no tempo que sobra, pedaços. Apaga. Materializa o que pensa em fragmentos construídos em intervalos irregulares. No quarto vazio, quieto. Ônibus e mercado. É um presente que aparece. Que procura. Lapida o que é bruto e, depois de pronto, entrega.

Dança

Um sorriso. Só um. Sorriso dela. Sorriso dos sonhos que sorriu pra mim. De mãos dadas, durante a dança. Parece mesmo um raio, o nascer e o pôr do sol. Eu mesmo, admirado, sorri. Meu melhor sorriso. Pra ela.

Fábrica

Metido com venda de bala, morreu cedo. Vinte anos. Foi na fábrica, pegou o carregamento e, já em casa, separou em potes. Depois do almoço. Amigos, professores e seguranças. Senhoras de idade. Elogiado pela cordialidade e discrição, foi alvejado na esquina de sempre. Ponto conhecido. Os tiros, em diferentes partes do corpo, provocaram o óbito imediato. Assassino, vítima e testemunhas. Silêncio.

Surpresa

Quase morreu. Quase. Vinha de moto. Velocidade baixa, pouca atenção e surpresa. Mandaram parar. Desligar, descer e entregar. Ficou nervoso. Mandaram alguém atirar. Ouviu o que disseram. Aos berros. Carteira, pulseira e celular. Um soco. Dois chutes. Caído e sujo, ouviu o que disseram. Saíram. Ficou sozinho. Doído. Vivo, sente o gosto. Não volta atrás. Nada que apague.

Gastrite

Na primeira varredura, inchaço no pâncreas. Corrigido. Febre, dor de dente e torcicolo. De uma vez só. Um comprimido. Ficou bem. Anos depois, precisou de mais. Conjuntivite e cólica. Cegueira noturna. Dos dez que ganhou, sobraram três. Ficou com medo e, por isso, passou a poupar. Passou pela afta e pela gastrite. Fez uso de medicações convencionais. O primeiro dos últimos, incômodo na lombar. Curada. Veio a queda. Resistiu. Passou pomada comum. Sífilis e labirintite. Frasco vazio. Não tinha mais nada.

Dia

Naquele dia, era o que mais queria. Não veio. Agora veio. Passou do lado, solícito. Deixou que fosse. Naquele dia, pedia. Sofria. Era o que mais queria naquele dia. Hoje viu de frente. Disponível. Deixou que fosse. Naquele dia, não deixaria. Gritaria. Era, naquele dia, o que mais queria.

Ápice

Antes de mais nada, pra não dizer primeiramente e induzir ao complemento em voga, não se trata de política. É outro papo. Origem, desenvolvimento e ápice do pensamento. Do embrião à conclusão. Vida a dois ou mais, morte e emprego. Reflexões que geram flexões. Atividades em geral. Fazer café, ficar em casa. Ansiedades, raciocínio lógico e ideias malucas. Paz que, pelo motivo errado, toma conta. E o contrário.

Princípio

Nasceram naquele dia. Priscila, Sérgio, Régis, Ana e Alice. Nunca se conheceram. Nenhum destino cruzado. Em comum, além do aniversário, o de sempre: corpo e entorno. Cada um abriu os olhos a seu tempo. Países diferentes. A princípio, ausência de deformidades e deficiências. Pacote completo. Órgãos, veias e unhas. Um cérebro pra cada um.

Espaço

Quatro estorvos. Dois em cima e dois embaixo. Direita e esquerda. Ao invés de ajudar, atrapalhavam. Faziam força. Queriam espaço. Os demais, perfilados, não esperavam. Desconforto. Raiva. Discutiam sobre medidas a serem tomadas em relação à atitude condenável dos recém-chegados. Causavam dor. Optaram pela remoção impiedosa. Pelo despejo. Pra isso, planejaram e executaram um processo de três etapas. Injeção, ataque e extração. Arrancaram e voltaram ao normal.

Original

Pediu a mão de Mônica. Pegou e atravessaram. Do lado oposto ao original, brigaram. Disse que não precisava. Que já era grande e que, sem ajuda, conseguiria. Tava madura. A companhia discordou. Disse que não. Outra rua. Ordem, obediência amarga e briga. De novo. Relação desgastada. Uma, com pressa, apressava. A outra, boicote. Briga mais feia. Agressão física, choro e castigo. Nada de rua.

Caminho

Fim do volume I. Primeira parte. De passagem pela metade do caminho, salvo ocorrência fatal antes do que calcula, novidades. Volume II. Continuação da fase adulta, velhice e morte. Quase o mesmo tempo. Número de páginas. Gostou do primeiro. Às vésperas da transição, arranjos e rearranjos. Despedidas. A seguir, tudo de novo. Tédios e aventuras. Terror. Drama. Comédia, romance e fantasia.

Hipótese

Jurou que, em hipótese alguma, cederia novamente aos encantos de Daniel. Que era passado. Contou pros outros. Disse que nem pensar, que não queria e que tava recuperada. Nova em folha. Deram força. Apoiaram a iniciativa e citaram argumentos favoráveis à resolução. Saíram juntos. Todos. Daniel também. Com amigos em comum em volta, ficaram distantes. Fingiam não notar. Deu vontade em Marcela. Sentiu muita vontade. Resistiu. Por ela, já tava grudada faz tempo. Mas foi fraca, pensariam. Ficou nessa.

Roupa

Até a hora, horas e horas. Foi na rua e voltou. Comprou banana. Dormiu, acordou e dormiu. Comeu. Penteou o cabelo e escolheu a roupa. Dobrou e guardou. Viu de novo o que já tinha visto mais de uma vez. Cortou as unhas. Tomou banho quente, demorado. Ainda tinha tempo. Pensou na vida. No futuro próximo. Saiu cedo e esperou.

Falha

É uma pena que tenha nascido, crescido e interaja. Que exista. É lamentável. Repugnante. É uma pena que diga o que pensa. Que escutem. Que eu, azarado, tenha te conhecido. É triste. Você é deplorável. É um desserviço à evolução. É uma pena que, sendo assim, possa procriar. Você é um estorvo. É execrável. É uma pena que faça o que faz. Do jeito que faz. Você faz mal. É mal-vindo. É uma falha, uma lástima. É um erro.

Parede

A cabeça do galo, menor que a da média, cabia no buraco da parede. Descobriu no dia que tentou. Viu que, do outro lado, galinhas ciscavam. Nunca tinha visto. Naquela fazenda era assim. Pra que procriassem, botavam vendas em ambos. Tinham dificuldade pra acertar. Gostou dos corpos femininos e focava nas diferenças. Passou a botar, todo dia, a cabeça no buraco. Viu os ovos e ficou confuso. Depois viu os pintos. Vários. Alguns mamavam e outros não. Nunca entendeu. As penosas, no susto, descobriram o observador. Foi Margarete que percebeu. Contou pras outras. Cacarejavam sobre o diâmetro diminuto daquela caixa craniana.

Altura

Na balança, pesou os dois. Escolheu dinheiro. Parecia seguro. Tem roupa, comida e viaja. Volta mal. A companhia, chata, não dança. Não fantasia. Seria melhor se, àquela altura, tivesse priorizado a garantia de sorrisos bobos. Afeto. Sobre a vida, se engana. Diz que é assim mesmo. Que é triste. Protagoniza, nos sonhos, romances que ninguém vende. Faz de conta.

Sangue

Veio pedra. Parada. Pesada. Pra sair do lugar, vento forte. Chute ou tropeço. Alguém que cate. Jogada na cara, tirou sangue. Caiu no chão. Manchada, suja. Na chuva, banho. Alma lavada. Outro baque. De brincadeira, jogaram no rio. Encharcada, distante. No fundo, não tinha saída. Ficou lá. Veio a seca.

Facão

Até ser cortado, tava inteiro. Dobro do tamanho atual. Facão amolado. Quente. Duas pernas pra cada lado. Dois braços. Um coração só, um cérebro e dois olhos. Procura. Faltam pulmões e um nariz. Uma boca a menos.

Efeito

Propenso a tal, chorou à toa. Homenagens, confissões e mensagens. Qualquer coisa. Camisa, cabelo e mania. Conquista. Algumas frases, queria prender. Ficar pra sempre sob o efeito que fizeram. O tempo todo. Entre extremos, gangorra. Lamenta e celebra. Esquece. Respira. Por dentro, lama no arco-íris. Suicídio e ressurreição.

Diâmetro

No fundo do pote, amassada, sofreu. Foi a primeira. Tinha espaço, tempo e orgulho. Pensou errado. Pareceu, pra ela, que valia mais. Caíram em cima. Muitas. Pesaram. Sufocada e irritada, gritava. Queria ar. Era igual. Todas que chegavam, quietas, eram iguais. Diâmetro, cor e aparência. Por excesso de companhia, perdia o ar. Se contorcia. Até que um dia, descrente, foi salva. Foi pra outro canto. Espreguiçou.

Dinheiro

Feliz com a economia, ficou em casa. Tá duro. Viu filme de graça, tocou o violão que já tem e comeu o que tinha. Pra sair, ida, entrada, consumo e volta. Muito dinheiro. Ligaram no meio da noite. Mais de meia-noite. Disseram, aos berros, que tava ótimo. Que devia ir. Balançado, pesou. Tava bem sozinho no quarto. Tava sozinho. Seria bom chegar na festa. Lembrou de quando, em ocasiões parecidas, valeu a pena. Lembrou do contrário.

Ninguém

Na saída, beijou a barriga. Abriu um sorriso, deu tchau e foi embora. Ficou sozinha. Nervosa. Não conta pra ninguém que, na época, transou com Diogo. Pra isso mesmo. Pra ter um filho dele. Calculista, convenceu o marido a copular no dia seguinte. Agora torce. O cônjuge, certo de que é o pai, tá feliz. O então amante não faz idéia. Não sabe que a futura mãe, naquela noite, mentiu.

Papel

Escreve o que não diz. O que não sai da cabeça. O que, um dia, pra passar, precisa falar. Com medo de que a ação elimine a esperança, só desembucha no papel. Extravasa. Deixa muito claro o que sente por Eliana. Em frases escondidas, abre o jogo. Conta o que dói, o que encanta e o que sonha. Descreve e projeta. Pra ficar por perto, convites. Amizade e silêncio. Um cara desinibido, que não conheciam, veio e fez. Deu certo. Nas anotações, pesar. Torcida ferrenha pra que não evolua.

Café

Aquele berro, naquela hora, parecia mentira. Ninguém esperava. Mais cedo tudo bem. Sem comentários. Não diriam que, com certeza, ficou maluco. Que perdeu o controle. Foi alto. De tarde, depois do almoço. Acharam estranho. Gritou com força. Não disse nada, não explicou. Cismam que o barulho, nesse momento, é impróprio. Que não é natural. Pra ele, não faz diferença. Não se importa. Emite o som, agudo e estridente, quando quer.

Língua

Chamou de feia. Palavra simples, substantivo. Disse que é bradante. Que, pouco suave, soa mal. Reagiu. Usufruiu de palavrões. Quando chegou à língua, desde os primórdios, é assim. Mesmas letras, sílabas e sonoridade. Desempenha a função. Diferente de amor, felicidade e paraíso, é concreta. Ficou chateada, triste. É atacada, mal pronunciada e destratada. Apagada entre poderosas expressões, significa pouco. Detalhe.

Queda

Coloridos e com cabeça de ponta, catavam coco e jogavam pro alto. Na queda, conscientes, deixavam o crânio na reta. Quebravam, comiam e bebiam. De braguilha aberta, urinava quando questionado pelo diretor de operações. Pensou, guardou o pau azul e disse que iriam. Que o grande coco era questão de honra. Saíram e chegaram cedo no pé. Deslumbrados com o avantajado exemplar, sorridente lá em cima, se aproximaram. Formaram um círculo cheio. Com vara longa, cutucaram. Caiu onde queriam. Esmagamento e morte.

Prato

Pra esfriar a cabeça, passou a faca no pão. Arma branca de serra. Sem ponta. Abriu, arrancou os miolos e besuntou a bisnaga. Repousou num prato seco. Tomou leite também. Colher de sopa no pó. Com a esponja, lavou a louça. Detergente no lado verde. Alimentado, eliminou resíduos entre dentes. Arrumou o quarto e tomou banho. Fez tudo com calma. Respirou.

Teia

Pisou na barata e, de cócoras, varreu pra pazinha. Estapeou o mosquito. Nas formigas, chinelo. Chacina. Na aranha, na teia do teto, passou o rodo. Deu descarga no gongolo. Protege animais, mas não todos. Envenena ratos. Trucida bichos que considera nojentos. Que dão medo. Minhoca, corta no meio. Coelho não.

Arranjo

No shopping, vê as plantas. Comenta. Orquídeas na renda portuguesa. Amarela, azul e rosa. Pra namorada, tem arranjo. Flores na folha de plástico. Lojas, em segundo plano, à esquerda e à direita. Perto da escada, uma que não conhecia. Pediu informação. Aprendeu, anotou e agradeceu. Avenca no corredor. Deu tchau pra violeta e, feliz, foi embora sem comprar nada.

Estrela

Tem sonhado muito. Todo dia. De manhã então, entre sonecas, profusão. Têm inéditos, recentes e antigos. Tem um que é de praxe. Não a história, a protagonista. Aparece sempre. Estrela máxima dos conjuntos disparatados de imagens, ainda existe depois que acorda. Sente falta. Tenta dormir mais.

Ápice

Chegaram cedo no motel. Ligaram o ar e o rádio. Tiraram a roupa um do outro, passaram pelas preliminares e atingiram o ápice. Os dois. Ficaram abraçados. Conversaram, dormiram e acordaram rápido. Muitos beijos. Lambidas. Tudo de novo. Desta vez, saíram da cama. Fizeram em pé. Se olharam no espelho, usaram produtos adquiridos no sex shop e, depois de incontáveis idas e vindas, alcançaram o topo. Tinham tempo. Passado algum, mais uma. Dentro d'água. Demorada. Profundamente apaixonados, vidrados, viveram fantasias. Estavam no auge.

Corrente

Acordou preso. Nada de corda. Nem algema, nem cadeado nem corrente. O corpo, livre e saudável, podia ir e vir. A mente que não deixava. Condicionou a liberdade à construção de algo extraordinário. Algo tão comovente que justificasse a alforria. Chave na porta. Trancada. Pra sair, algo brilhante. Diferente. O que fez não serviu. Precisava de mais. Insistiu e, num esforço descomunal, cavou um buraco. Fantástico. Gostou tanto que foi liberado.

Metade

Com inveja do mendigo, que dormia de tarde, voltou do almoço. Prato pra um. Comeu metade e levou a sobra. Outro cara, acordado, pediu. Negou e andou. Chegou atrasada. Ainda com sono, trabalhou, compensou o quarto de hora e foi embora. Na saída, na rua, família inteira. Miséria. Jantou a quentinha.

Igreja

Sem toalha, pulou pelado. Tinha hora. Repetiu a roupa e, a passos largos, andou na rua. Fez sinal. Sempre faz. A igreja, das antigas, ficou pra trás. Mercado, farmácia e posto. Padaria. Seguiu em alta velocidade média até chegar no mecânico. Pediu informação. Orientado a pedir ajuda, parou na esquina. Disseram que a praça tava perto. Depois da curva. Chegou e viu, no banco, a caixa. Deu tempo.

Papo

A mulher, quando viu a outra, não imaginava. Experiência nova. Era apaixonada por Vitor. Sofreu, separou e sofreu. Achou que era pra sempre. Desencantada, contou pra Bianca. Papo de amiga. Mudou. Olhares, toques e harmonia. Tesão. Primeiro beijo. Primeira vez. Com o tempo, amor. Do mesmo jeito. Imenso.

Síntese

Decretou, pra si, o fim dos títulos. Parou de usar. Solidário a combinações inteligíveis de letras, respeita o poder de síntese de uma palavra só. Não sobrecarrega. Evita que, isolada lá em cima, fique mal. Também não gosta de frases inteiras. Não assim. É contra a exploração de vocábulos pra dar ideia do conteúdo adiante. Sem denominação, sem índice e sem prefácio, impede conclusões precipitadas. Conta a história. Ponto final pra acabar.
78 é o ideal. Perfeito. Lindo. Setenta e nove já estraga. Perde o brilho. Começa assim. Em branco. Três destaques: medo de ter deixado o ventilador ligado, vaso entupido e execução da melodia. Ficou com aquilo na cabeça. Perturbado. Quando foi embora, displicente, não deu atenção. Mal dormiu. Sobre o banheiro, tentou água quente depois da sanitária. Até que, com uma pequena garrafa aberta no fundo, provocou a sucção. Agora as notas. Ordem cronológica mesmo. Descansado, descobriu como era. Vontade e paciência. Capricho e pronto.
Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Fim.

Vontade

Ouviu o que disse, alto no ouvido, o órgão responsável pela circulação sanguínea. Foi claro, insistente. Queria ação. Que fizesse a vontade virar fato. Perdeu tempo. Mais tempo. Até que, numa das tantas tardes, conseguiu. Botou em prática. Preparou, apontou e finalmente golpeou, com um dos membros de locomoção, o recipiente plástico que tem alça e é mais largo na borda que na base. Orgulho imediato. Felicidade enorme. Diante do que é novo, anda. Pra frente.

Buraco

O da esquerda é grave, sisudo. O da direita berra. Era um abismo: |                            |. Quiseram ajudar. Pra aproximar, botaram um no meio: |              _             |. Nem lá nem cá. Perfeito. Precisavam de mais: |      _      _      _      |. Os dois novos, chegados aos extremos, somaram. Ainda tinha buraco pra tapar. Continuaram. Depois de pronto, |___________________________|, ficou fácil. Nem precisou pular.

Dragão

Um desenho em cada uma. Dragão na branca e Deus na preta. O alien, na azul, cuspia. Cortes na verde. Inseto na vermelha e pessoa na amarela. Coisa de artista. Ficavam na sala. Esferas enfileiradas em rotação vertical. Caíram e quebraram. Esperança nenhuma. Nenhum pingo. Como pôde, catou os cacos.

Agora

Ficou quatro minutos no espelho. Olhos nos olhos. Fez o texto que agora lê. Por quatro minutos, de pé, close. Cabelo, boca e barba. Feições. Reações. Parou, por quatro minutos, pra ver.

Lado

Uma hora acorda. Não tem jeito. Sem despertador, sem compromisso e sem vontade. Viva, abre os olhos. Fica deitada. Lamenta de barriga pra cima. Pra dormir mais, vira pro lado. Desvira. Desiste. Levanta e, de pé, se arrasta. Até dar sono de novo.

Estalo

Lembra bem da porta branca. Proteção de ferro, quatro degraus e ela. Abria pra dentro. Sem chave, tocava a campainha. Ouvia o estalo. Empurrava e largava. Deixava bater. No caminho, já sentia. Entrava a contragosto. Pensava em como seria lindo se, nunca mais, passasse pelo vão deixado pela rotação do retângulo. Também tinha corredores, salas e janelas. Ia sempre. Todo dia.

Custo

Jair sempre perde. É fraco. Quando começa, tomado pela emoção, desconcentra. Quer que acabe. Aceita argumentos contestáveis. Arrependido por ter falado, escuta. Parece trauma. Pra brigar, mesmo verbalmente, é um custo. Porrada nem se fala. Prefere consentir. Numa situação extrema, em que a culpa do outro é flagrante, tudo bem. Perdoa. Luta pelo acordo imediato. Poucas vezes foi agressivo. Numa delas, por conta de um soco desferido, pediu desculpas.

Adulto

Depois de grandes livros, de muitas páginas, pegou um fininho. Autor despojado. Foi rápido. Absorvido, acabou. Quis outro. Achou melhor. Ficava preso em longas narrativas. Cansativas. Relevo, clima e contexto. Fisionomias. Esse não. É direto. Concentrado na trama, na intransigência dos envolvidos, puxa pro pessoal. Adulto imaturo em xeque. Contemporizador. Indeciso.

Barriga

São unidades. Uma de cada cor. Por mais que insistam, que propaguem a existência da possibilidade, não se fundem. Não dá. Quando o sexo é bom, quase conseguem. Desgrudam em seguida. A orelha é outra. Visão, cheiro e estrutura cognitiva. Saem da barriga. Não ficam. O abraço acaba, o sorriso fecha e os olhos abrem. Sonhos diferentes. Parecidos, coexistem. Dividem espaço. A premissa apregoada, da ajuda mútua, tem limite. Se conhecem. Se distribuem. Histórias e anseios, inacessíveis, guardam. Ninguém alcança.

Água

Com perda parcial de sensibilidade na língua, parou de sentir um gosto. Parecia pesadelo. Trocou de copo, bebeu outra água e foi igual. Notou a magnitude do órgão. Deu valor ao desempenho perfeito e ininterrupto até então. Pra se proteger do desespero, deixou pra lá. Cérebro em paralelo. Se distraiu e, quando viu, tava curado. Era só um talho. Nada demais.

Surpresa

Decidida, ficou em pé. Estranharam. Pegaram, conferiram e jogaram de novo. Mesma coisa. Chutaram. Correram pra ver. Ereta, destemida. Resolveu que, dessa vez, não ajudaria. Não tomaria partido. De cara, daria Marcelo. Comemoração efusiva. Diogo triste. Viu perplexidade. Que a dupla, surpresa, não entendia. Explicou. Pediu pra conversarem. Pra, ao invés da sorte, tentarem o acordo. Cogitaram. Pesaram prós e contras. Discutiram tanto que, com vergonha, guardaram a moeda. Disfarçaram. Falaram baixo. No fim da contagem, mostraram os dedos.

Sala

O filho, de um babaca com uma escrota, nasceu e vai crescer. Vai conversar com os outros. Sujeito à transmissão contínua de ideias ruins, tem tudo pra dar errado. Pra ser um bisonho que só anda com bizarro pra fazer merda. Tem dias de vida. Sem saber quem está na sala, dorme. Não entende nada. Se, já no hospital, tivesse sido trocado, seria ótimo. Pra ele. Pra espécie, daria no mesmo. Só mudaria o bebê.

Farmácia

No caminho, passou pela pracinha e pelo campo. Padaria. Até o hospital, que tratou mal do avô, ficou pra trás. Passou pelo primeiro beijo, pelo primeiro beijo que agradou e por decepções. Onde não tinha nada, farmácia. O mercado igual, a igreja igual e a casa, antiga, derrubada. Passou pelas brigas, pelo medo e pela bronca. Pelas flores. Absorvido, passou pelo pranto. Pelo esforço. Rede, raquete e trave no meio da rua. Passou pelo trauma. Pelo aplauso e pela escada. Euforia. De tênis e meia, passou pelo amor que não acaba. Que não muda.

Raiva

Tudo que escreve é lixo. Não presta. É tão ruim que dá raiva. Tempo que não volta. O texto chulo, desnecessário, cai mal. Leitores pedem misericórdia. Suplicam pra que tenham os olhos poupados de sequências tão infelizes de palavras. De ideias tão bobas. Se pudessem, evitariam. Não passariam nem perto. Fazem fila por obrigação. O primeiro, pelo menos, se livra logo. Os demais ficam apreensivos. Sofrem. Torcem pra que algo inesperado interrompa o processo de tortura em massa. No último, de doer, manteve o estilo.

Metade

Atrasado, bateu a primeira punheta aos 23. Tirou carteira aos 28, título aos 29 e fez sexo a dois aos 36. Tá com 72. Filho, filha e divórcio. Casou com 57. Até morrer, com calma, vive. Conheceu o mar aos 21. A barba, rala, apareceu aos 44. Nasceu com órgãos pela metade. Ficou inteiro aos 11 e, com 27, aprendeu a ler. Andou com 15, falou com 18 e assoviou aos 39. Com 70, tirou a boia do braço. Foi sozinho pro fundo.

Elogio

Tô orgulhosa de mim. Descobri isso agora. Depois de anos de autoflagelo cognitivo, de um medo constante, pensei assim. Dei força pra um raciocínio positivo em relação ao que sou e ao que faço. Feliz por decisões, ações e projeções, motivada, não vejo a hora. Que diferença. Entendo minha insignificância em relação ao todo, mas aqui, onde só tenho a mim mesma, sou tudo. Respeitei minha natureza. Convicções. Advogo pela paz, flores e demais. Sou repulsiva e asquerosa, claro. Só que tô bem. Teve uma coisa que me ajudou. Um elogio de graça, inesperado. Alguém olhou pra mim e disse, sem eu pedir, que sou muito linda. Agradeci e acreditei.

Tempo

Sempre passa rápido. É engraçado. Divertido. Até acabar. Ao longo da duração, felizes, aproveitam. Não pensam no mais que têm que fazer. Depois sim. Listam necessidades, cumprem tarefas e ocupam o tempo de maneiras menos satisfatórias. Combinam de novo. Realizam e acaba de novo. Forçam consideráveis extensões do período de convivência e, nem assim, deixam de lamentar o afastamento. Fazem com frequência. Começam cedo e evitam dormir.

Barulho

Sumiu quando, no ar, jogou o pó. Pegou a transversal. Pulou o muro e, no chão, deitou de barriga pra cima. Pessoas viram. Teve uma que passou direto. Quando perguntaram, disse que vinha sendo perseguido pela máfia russa. Por conta da invenção. Precisava se proteger. Destratado no instituto de patentes, esqueceu as formalidades. Guardou numa caixa. Fechou e submeteu à testes de resistência. Ouviu um barulho. Cabreiro, desceu pra ver. Arrastou a barreira, tirou o pano e conferiu. Botou de volta. Acionou o alarme. Segue atento.

Mundo

Ofereceu um beijo à flor, que, encantada, aceitou. Transe. Dividido e somado. Não queriam que acabasse. Acabou. Conheceu outra flor. Ofereceu um beijo à ela, que, encantada, aceitou. Transe dividido e somado. Não queriam que acabasse. Acabou. Ficou sem flor. Conheceu uma nova flor. Se encantou pela flor. Não sabe o que há, pra tanto, nos olhos da flor. Representa a perfeição. Mas pode ser que, insensível, diga que não. Triste pensar assim. Que não há, no mundo, alguém afim. Se, ao invés disso, disser que sim, festa. Festa no jardim. Festa, a princípio, sem fim.

Palavra

Evangélicos e católicos ignoram a palavra que defendem. Matam o próximo. Ateus atacam divindades que juram não existir. Espíritas recebem por fora. Indecisos condenam. Apesar de compartilharem incertezas inegáveis, acusam. Cometem falhas que apontam. Acreditam e destratam incrédulos. Ofendem e jogam pedras. É estranho. Atletas ridicularizam sedentários que malham atletas. Ruivas falam mal de loiras. Moreno, branco, preto e nordestino. Carioca. Gordo e magro. Careca. Cabeludo. Drogado. Homo, bi, hetero e simpatizante. Usuário de óculos. Protegem, de olhos fechados, características que carregam e partidos que apoiam. Times. Agridem com vontade. São alvo e flecha. São pessoas feias. Todas elas.

Remédio

Parece morto. Perdido, perturbado. Controlam pra não morrer. Saiu do coma e, atordoado, voltou à rotina. Tinha um piano que tocavam. Alguém, poderoso, mandou vender. Acabou a música. Magoado, não digeriu. Decepção que acelerou a deterioração do cérebro. Mais remédio. Psiquiatra, psicólogo, cardiologista e anestesista. Licença médica. Afastamento. Confuso, tenta esconder. De si próprio e de quem aparece na frente. É triste porque tá claro. Não vê que já não lê, não joga e não entende. Esquece. Passa dopado pelos dias. Cabeça que voa. Num tempo, espaço e cadência diferentes, não sabe bem de mais nada. Tá acabado.

Doce

Tem bala em casa. Doce. Planta, farinha e álcool. Não quer nada. Tá devagar, quase parada. Corre o risco de perder tudo. A validade das drogas, explícita somente nas engarrafadas, é um mistério. Podem ter estragado. Sem problemas. Se for o caso, esquece. Pensa em doar pra alguém. Amigo, conhecido ou usuário qualquer. No sentido tóxico da expressão, tá limpa. Não quis falar em sexo. Estuda, trabalha. Não reclama. Gosta da fase que vive. Viciou em outras coisas. Tá preocupada.

Lanche

Com saudade, quer ver de novo. Chega a doer. Seria inocente, descontraído. Nada que repoluísse águas passadas. Trocariam beijos e, no abraço, um tempo. Perguntas genéricas, temas atuais e olhos curiosos. Teria que sentir. Perceber, entre ações e reações, vontades e tendências. Pensa em desculpas, motivos. Cinema ou qualquer coisa. Lanche da tarde. Ficariam a sós. Diante da possibilidade de decepção imediata, protela. Projeta a retomada do convívio. Desdobramentos. Tudo dá nó. O que dá certo, no fim, não sabe. Convite pronto. Silêncio.

Serrote

Foram três planos. Fabrício apostou na força. Quando a sós, quebrariam uma das hastes. Falhou. O de Fernandes, baseado na velocidade, também deu errado. Disparariam assim que abrisse. O guardião, atento, impediu. Felipe pediu tempo. Acumularam matéria-prima e ingredientes nocivos à saúde humana. Fizeram um serrote e um veneno. Espalharam onde, certamente, Clóvis encostaria. Foi rápido. Passou a mão na boca e caiu morto. Cortaram a madeira. Escaparam. Na época, já cantavam. Comiam, bebiam e dormiam bem. Pés no chão. Precisavam decolar.

Picolé

No mundo que é bom, tem estrela. Roda gigante, vale verde e charrete. Arco íris e picolé. No ruim não. É diferente. No que é bom, tem caminhada e piquenique. Ar fresco. Água pura, flores e companhia. É agradável. Tem gente feliz. O sol é brando e a lua é cheia. Tem entrada, almoço e sobremesa. História pra dormir e beijo de boa noite. Braços dados. No mundo que é ruim, não tem isso. No bom tem. Tem gargalhada. Brincadeira, desenho e melodia. Harmonia. Vida longa e saudável. No ruim não.

Música

Não sabia que horas eram. Não tinha ideia. Assustado, ansioso. Tinha compromisso e o despertador, descarregado, desligou. Minutos de pânico. Se tivesse perdido, seria péssimo. Seria condenado. Prejudicaria pessoas que agiram de acordo com o combinado. Irresponsabilidade irreparável. Não tinha janela pra abrir. Desregulado, ligou o rádio. Só música. Ninguém por perto. Tensão crescente. Talvez tivessem vindo e, agora, putos da vida, sejam incapazes de perdoar. Marcaram às 9h. Loteria. Dezenas separadas por pontos verticais. Quanto tempo no passado. Num sono, deitado. Descobriu um jeito. Com medo de tomar ciência, baixou os olhos. Fim do pesadelo. Alívio. Dava até pra dormir um pouco mais.

Chave

Abriu um sabonete novo. O último. O velho, gasto, deixou na pia pra lavar a mão. Tava fino demais. Ficou triste. Achou que seria peça chave de mais banhos. Final melancólico. Pega, esfrega e pronto. Não passa onde passava. Queria morrer. Numa noite, de repente, voltou pro box. Colado no substituto. Grudados pra ganhar corpo, ensaboaram barriga, pernas e axilas. Retomou o gosto pela vida. Viraram um só. Às vésperas do desaparecimento definitivo, deteriorados, aproveitaram ao máximo. Escorriam juntos, felizes pelo ralo.

Tênis

Saiu na precipitação. Pingos grossos. Desprovida de guarda-chuva, cansada e apressada, não hesitou em, desprotegida, encarar a adversidade. Criança de colo. Molhou o cabelo, o corpo e a roupa. Tirou o tênis. Correu. Pra atravessar a rua, meteu o pé na poça. Chegou no lado ímpar. 115, décimo andar. No elevador, encharcada, apertou o botão. Desceram no segundo, quarto e quinto. Entraram no oitavo. Assim que abriu, disparou. Sangue que escorria. Choro alto no ouvido. Acendeu a luz e, sem parar no tapete, bateu a porta. Chuveiro, toalha e curativo. Carinho e cama. Beijo de boa noite.

Hospital

Quando precisou, foi ignorado. Achincalhado, agredido e roubado. Parou no hospital. Achava que, em situações extremas, seria protegido. Que seres do porte de Lanterna Verde apareceriam pra ajudar. Sumiram. Ao invés de patrulharem o bairro, que prossegue perigoso, brigam entre si. Por ego. Pela sensação de superioridade, abdicaram do propósito. Deixaram o mal à vontade. Em suas salas, fiéis aos princípios, vilões confabulam. Espalham capangas pelas ruas. Promovem guerras intergalácticas e exterminam inocentes. Nada de super-homem.

Ponto

Dormiu cedo pra acordar cedo, levantou na hora, tomou banho, escovou os dentes, mal tomou café, escovou os dentes, trocou de roupa, saiu de casa, chegou no ponto, esperou o ônibus, esperou o ônibus, pegou engarrafamento, pegou engarrafamento, desceu do ônibus, chegou atrasado, foi repreendido, trabalhou, mal almoçou, trabalhou, trabalhou, saiu do trabalho, chegou no ponto, esperou o ônibus, esperou o ônibus, pegou engarrafamento, pegou engarrafamento, desceu do ônibus, chegou tarde, mal jantou, dormiu cedo pra acordar cedo.

Relógio

Admira tanto a Reginaldo quanto admira Kobe Bryant, astro da NBA. Planejamento impecável. Pontualidade, mantimentos adquiridos com antecedência e vestuário adequado. Relógio amarelo. No cume da noite, alerta, interagia. Tinha amigos. Espécies de Shaquille O’Neal, Pau Gasol e Derek Fischer. Jogavam bem juntos. Nas dificuldades, uniam forças. Foram expulsos. Do lado de fora, impedidos, orientavam. Torciam. Diferentes entre si, primavam pelo companheirismo. Bebiam, cantavam e botavam a mãe no meio. Criavam polêmica.

Agulha

A bala na cabeça do pato, que não era o alvo, fica entre o bico e a testa. Vira e mexe sente dor. Parece uma agulha que enfiam até o talo. Demoram a tirar. Passeava com a pata quando, atingido, apagou. Cristina chorou. Assustada, levou pro hospital, explicou o ocorrido e pediu ajuda ao protetor das aves. Intervenção cirúrgica. Deu certo. Acordou seminu e, ainda confuso, cacarejou. Profissionais da saúde apareceram pra ver. Deram alta. Conversaram, no caminho de casa, sobre a vida. Tiros, mortos e feridos. No que abriram a porta, quis copular. Deu beijo, fez carinho e strip-tease. Beto, com enxaqueca, disse que não dava.

Carruagem

Tá estranho. Não satisfaz. Pra ser mágico, falta muito. Quer o jardim florido com sol ameno. Abraço que encaixa. Beijo de verdade, piquenique e céu azul. Amigos em festa. Sorrisos, filhos e carruagem bonita na tarde de outono. Na expectativa, passou o dia séria. Inteiro, do início ao fim. Sem força, sem dança e sem graça. Sentiu raiva, angústia. Nuvem cinza na cabeça, que, persistente, perseguiu. Conhece o caminho e sabe que tá errado. Que, desse jeito, não chega. Por mais que insista, que tolere circunstâncias, ainda sonha. É pouco. Precisa do olhar que invade a alma. Do arrepio e da cama. Chuva, frio e coberta.

Banco

Andou na rua e entrou no metrô. Pra abrir a janela e ser agraciado pela combinação de vento com visual, saiu pra ir de ônibus. Tinha, no ponto, tempo e tranquilidade. Ar fresco. Achou melhor que atravessar o buraco. Podia olhar pro céu, pros prédios ou pra massas de água. Focou no ambiente interno. Altura do banco da frente. Dominado pelo que, no momento, ocupava o cérebro, ignorou árvores e pássaros. Desprezou fisionomias. Preferiu pensar e viveu as consequências. Pra conceber, perdeu a paisagem.

Princesa

Ganhava quem escrevesse mais rápido. Fernanda disparou. Defendeu, sem pensar, a chacina de animais domésticos e agressões verbais contra seres inanimados. Contou a história da princesa imaginária. Disse que acumulava roupas e colhia algodão. Pra não ser eliminada, tinha que fazer sentido. Poucos minutos. Deixou escapar que, na dúvida, fica parada. Que sofre. Achou mais fácil no treinamento. Profusão de palavras que renderiam pontos. Na pressa, confessou que vai às lágrimas porque, no fundo, ama o menino da rua debaixo. Oração simples. Correria. Sem rasura e sem erros, falou mal da competição. Fez elogios à calma e à paciência. Prometeu que, dali em diante, comeria devagar. Fim. Comoção. Aplausos e gritos. Linhas de vantagem.

Combate

Depois de roubar, mentiu. Disse que não sabia. Evidências entregavam. Na esperança da confissão, perguntaram de novo. Tiraram fotos, anotaram e liberaram. Avisaram que ficariam de olho. De binóculos, vigiaram na moita. Posicionaram câmeras. Fez, na hora e do jeito esperado, o que imaginavam. Registraram. Prisão em flagrante. Apesar da culpa indiscutível, jurou inocência. Lavou a cara e proferiu ofensas. Declarou que, na verdade, não era o que pensavam. Defendeu o combate à crimes alheios.

Dianteira

A ferradura, menor que a pata, machucou o equino. Dianteira direita. Competiu com dores. Pra trocar, teria que voltar em casa. Largou em quinto, chegou em quarto e, de imediato, arrancou a chapa de ferro. Alívio. Jogou água e fez massagem. Só botou de novo porque descalço é pior. Saiu com pressa. No ônibus cheio, não tinha lugar. Viajou em pé. Puxou a corda e desceu com cuidado. Ao invés de galope, trote. Chegou destruído. Tomou banho, trocou de roupa e deixou a cadeira em frente ao sofá. Aplicou gelo na sola. Comeu pouco e, preocupado, dormiu mal. Precisava correr no dia seguinte.

Amarelo

Fica estranha com o par errado. Ri amarelo. Sabe que não combina e, se pudesse, esconderia. Não tem jeito. Perdeu o certo e não pode andar descalça. Apela. Quando olha, desgosto. Não é o que tinha. Suporta, com dificuldades, o peso da ausência. Faz de conta que tá bom. Que é assim mesmo. Sumiu na confusão, no tumulto. Tanta bagunça que, desorientada, deixou de ter. Lembrança nítida. Tamanho, cor e estilo. Usou na floresta. Na cama e na praia. Agora, desprovida, sente falta. Do encaixe. Da perfeição.

Varanda

Irritado com familiares, deu o troco. Esfaqueou a irmã e o pai. Na mãe, tiros. Empurrou primos no precipício. Queimou tios e o filho, mais velho, estrangulou. Asfixiou o mais novo. Avós afogados. Esmagou o crânio da sobrinha, chutou o neto e correu pra casa. Todos juntos. Não acreditou. Na varanda, de onde acertou a mulher, aplaudiam. Comemoravam o retorno. Ficou em choque. Pra acelerar a repetição da chacina, acionou a função giratória da metralhadora. Saiu de perto. Voltou e perdeu a cabeça. Viu que, ressuscitados, mandavam beijos. Saudavam o assassino.

Manga

Atrás do quadro, tinta branca. Azul no telhado. Falta estação no chuveiro elétrico. Tela nova, que, queira ou não, sempre pinta. Leite frio no copo d’água. Bermuda e chinelo. Masturbação, opcional, depois do café. Tem gente na rua. Teatro, festa e filme. Praia. Trabalho escravo. Fraude, vacilo e crime. Camisa, de manga, mal passada. Céu laranja e mato rosa. Fez de conta que o pianista, cínico, opinava. Teclas vermelhas. Intervenção silenciosa. Cadeira amarela e tijolo preto. Cabide verde. Moldura.

Patrocínio

As sardinhas entediadas, num papo mole, cogitaram voar. Correram atrás. Primeiro, de um snorkel às avessas. Depois asas e cartolina. Escreveram em letra de fôrma. Pra viabilizar o projeto, negociaram patrocínio. Comida, bebida e rede de proteção. Durante a substituição do sol pela lua, chegaram ao céu. Eram quatro. Uma em cada ponta. As que ficaram dentro d’água, sentadas em cadeiras de plástico, monitoravam. Torciam pelo sucesso. Lá em cima, já no escuro, acenderam as luzes. Mensagem nítida. Parabéns, tia Lúcia.

Passo

Sentiu de novo. Não esperava. Não queria. Ao invés de dormir, ensaia. Palavra por palavra. Decifra reações. Tenta entender. Evidências e sintomas, nítidos, assustam. É forte, constante. Parece o passado, só que pior. Não tem certeza. Aconselha a mente. A esquecer. Deixar pra lá pra não tomar outro tiro no peito. É incrível. É o que procura. Se não isso, nada. Faz tempo que cogita. No início, pouco caso. Autoproteção. Até que, de passo em passo, chegou perto. Grudou. Tomou posse. Agora, atingido, pena. Bicho bobo. Conta os dias.

Fantasia

O cabeça da tribo, conhecido como tal, sugeriu um luau. Ninguém respondeu. Contrariado, pensou em outra coisa. Não quis reclamar. Propôs uma festa à fantasia, de gente da cidade. Gostaram, mas, pra não dar o braço a torcer, ficaram quietos. Estavam com raiva porque tinham sido manipulados. Usados como força de trabalho num projeto que rendeu frutos somente pro idealizador. Errar de novo seria o fim. O cabeça, já preocupado, pediu desculpas. Disse que vacilou mesmo. Que, com a melhor das intenções, agiu mal. Aceitaram. De ternos, gravatas e vestidos, chegaram. Foram metralhados.

Abrigo

A metros da ilha, boiaram. Vinham de longe e, cansados, combinaram de parar pela última vez. Olharam pro céu. Conversaram sobre o que fariam depois que chegassem. Consumiriam peixes, água de coco e andariam pelados na areia fofa. Na véspera, caíram do balão. Voavam sobre o oceano quando foram atingidos pelo projétil perdido. Passaram o dia no mar. Como sabiam nadar, seguiram na direção da terra que tava à vista. Fim de papo, novas braçadas. Linha reta. Desnutridos e desgastados, não transaram de cara. Procuraram abrigo. Acharam, no mato, um bicho morto. Comeram cru. Improvisaram a cama de casal e fizeram bom uso.

Garganta

Gastou tanto que não sobrou nada. Nem um pingo. Virou, chacoalhou e, assustado, reconheceu. Acabou mesmo. Ficou mal. Sentiu dores no peito e nós na garganta. Olhou de novo. Lembrou dela inteirinha, à mão. Deixou que secasse. Sente falta. Não acreditou que o uso e abuso seriam capazes de extinguir o conteúdo. Corroía. Dias mais, dias menos, metia a mão por dentro. Arrancava e arranhava. Queria ter sido avisado. Que, próximo ao esgotamento, tivessem acendido a luz. Ficaria claro que cairia em desgraça. Que chegaria ao fim.

Garrafa

Rabanada no alho com esfirra de maionese. Pudim de empadão. Sorvete de ovo frito, suco de azeitona e carne de monstro. Comeu sem saber direito. Viu que tava na mesa e, sem frescura, ingeriu. Não achou ruim não. O estômago reagiu bem, acordou tranquilo e ficou na boa. Quibe de garrafa. Pasta de gelo e torrada de alpiste. Limpou o prato. Na casa dos pais, de noite, arroz com feijão. Frango grelhado, batata frita e farofa. Achou tão sem graça que, na refeição seguinte, revisitou a culinária insólita. Laranja corada. Sopa de amendoim na chapa, leite de peixe e salada de porco à moda boi. Sal de goiabada.

Volta

Morreu no sol quente. Tava doente, piorou e, mal atendida, sucumbiu. Enterraram de tarde. Calor, concreto e flores. Não tinha vento. Queriam sombra. Queriam água. Suados, lamentavam. Lágrimas misturadas. Se pudessem, ressuscitariam Luiza e iriam pra piscina. Ficariam felizes. A teriam de volta e fariam graça. Brincariam de apneia. Imersos no ambiente inóspito, naquele clima, acompanharam o processo. Afundaram o corpo e taparam o buraco. Quem foi pra casa, abriu a janela. Angústia e cansaço. Banho frio. Ventilador no máximo.

Alho

A kafta, comida, caiu bem. Comprou outra. Botou molho de alho, pimenta e mordeu. Deu um gole na bebida. Por intermédio do atendente, elogiou a cozinha. Disse que voltaria. Depois, entre a tarde e a noite, contou pra um casal de amigos e pra namorada. Defendeu a tese de que uma visita grupal ao estabelecimento seria uma boa. Falou no tempero. Tomate, cebola e pimentão. Deixaram a data em aberto. Um dia, passaram perto e, com fome, entraram. Foram simpáticos. Cumprimentaram recepcionistas, garçons e clientes da mesa ao lado. Pedidos iguais. Cilindros de carne moída e suco de abacaxi. Gelo à parte.

Arame

Tinha esquecido como era. Energizado, tranquilo. Tomou banho sem calça e descalço. Agora, sentado num banco vermelho, ouve o impacto da chuva no telhado de alumínio. Olha pro pedaço disponível do céu. Lâmpada vermelha, não pertencente a um prostíbulo, acesa num terraço. Nuvens camufladas num quase breu. Pelo vão comprido, achatado e ocupado por elipses de arame farpado, vê aparelhos de ar condicionado. Escuta pingos espaçados. Cadência calma. De olho fechado, parece até beira de rio. Correnteza que passa pelo cano de PVC.

Sabor

Não caiu nenhuma lágrima. Tá acostumada, calejada. Quando é assim, espera. Tempo que cura. Não importa. Não adianta bater a cabeça na parede chapiscada. O que tem pra dizer, pensa. Não divide. Tem vontade e tem medo. Melhor não. Esperança que guarda. De um amor bom, completo. Descomplicado e desimpedido. Mais felicidade e sorrisos. Menos tristeza. Menos angústia. Menos desgosto e mais sabor. Alegria, cristalina, a perder de vista. Porção generosa de paz. Mais paixão. Mais emoção. Ternura, cumplicidade e equilíbrio. Tudo isso junto. Num lugar perfeito, com a companhia perfeita e confetes. Morango e chocolate.

Genética

Osvaldo, confiante, calculou o raio. Multiplicou por dois e marcou a c com um xis. A seguinte, sobre conjuntos, pedia a interseção. Animais e frutas no enunciado. Regra de três, clima no Oriente Médio e política no Brasil. Terremotos. História depois. Revoluções, golpes e tratados. Muita guerra. Reações químicas, magnetismo e espelho. Genética e botânica. Na de português, junto com literatura, crases e verbos entre romances e poesias. Redação pra fechar. Tema atual e limite de linhas. Usou o rascunho. Gostou, passou a limpo e foi embora. Em casa, de imediato, questões discursivas.

Cólera

Agnaldo sentiu raiva. Quis responder, agredir e explodir. Arrancar a cabeça. Desconsiderado por quem amava de paixão, entrou em desespero. Andava pros lados, pra frente e pra trás. Resmungava. Com os olhos marejados, respirava com força. Pensava nas palavras e gestos que usaria. Em como faria pra afundar a tal pessoa num buraco cheio de lama suja. No auge da cólera, disse palavrões em voz alta. Mesmo que a reação brutal e imediata parecesse justificável, preferiu esperar. Se conteve. Respeitou a possibilidade de arrependimento. Até que, depois, a fúria virou desdém. Ao invés de gritos e revolta, silêncio. Afastamento. Não precisou brigar, orientar ou desabafar. Deixou daquele jeito. Resolvido.

Tampa

Deixou o copo sujo de suco em cima da pia. Foi embora. Quando voltou, interrogada por Adriano, pediu desculpas. Disse que prestaria atenção. De tarde, esqueceu o prato na sala. Adriano recolheu. Lavou, secou e guardou. Ficou puto. Depois do banho, distraída, pendurou a calcinha no box. A toalha, molhada, jogou na cama. Foi difícil pra Adriano. Num suspiro, superou. Nem falou nada. Mal deram boa noite e dormiram. Ela, antes dele, acordou. Deu a defecada matinal e não deu descarga. Voltou pro quarto. Adriano, com vontade de mijar, levantou a tampa. Viu e sentiu. Com raiva, apertou o botão. Esperou a sucção, fez o dele e apertou de novo. Lavou a mão. Secou. Abriu a porta e perguntou se Tânia tava de sacanagem.

Volta

Cansou da oscilação. Oscila muito. Cansa muito. Intermediários, melhores e piores momentos. Revezamento ininterrupto. Todo dia. Prefere morrer nos escombros. Aí passa. Fica tão bem que, pra lembrar, grava. Fecha os olhos, sente e absorve. Usa a recordação no marasmo. Pra evitar a desistência. Pelo que é mais ou menos, que não tem graça nem desgraça, passa batido. Segunda opção. Não consegue porque não dá. Algo acontece pra um dos lados. Pro encantado ou pro caos. E volta. E volta. Quer que pare, que continue e que volte. Não grita. É infinito. Que nem poesia, canto e conto. Balé do começo ao fim. Precisa ouvir. Imaginar é pouco.

Pedra

Fica escuro no buraco fundo. Caem sem querer. Desatentos, passam reto pelo aviso rente à cavidade. De dia é melhor. À noite, no breu, tateiam. Procuram uns aos outros e as coisas. No dia que o bombeiro chegou, acharam que seriam salvos. Tem gente misturada a animais e plantas. É longe do comércio. Não tem água, luz nem mobília. Wellington gosta. Descobriu depois. Disposto a escapar, pegou a corda. Lançou pro alto e, agarrado à pedra, subiu. Sentiu falta. Ficaram felizes quando voltou. Elogiaram a aparência, perguntaram sobre as novidades e pediram a corda emprestada. Disse que não era dele.

Futuro

Atrás das grades, pensativa, perdeu a hora. Saíram pro almoço. Comida, céu e sol. Refletia. Poderia ter refugado ou, ao invés de na cabeça, ter mirado no joelho. Quis mesmo matar. Tava com tanta raiva que, pra garantir, descarregou a arma. Foi presa na semana seguinte. Roupa do corpo, cara limpa e pavor. Conheceu Cláudia e Lúcia. Latrocínios. Contou a história e explicou os motivos. Combinaram de, no futuro, irem juntas na justiça. Levariam um projeto de lei. Quando voltaram, perguntou se tinha sido bom. Reponderam que sim. Que teve batata frita, arroz, feijão e peixe. Sentiu raiva pela distração. Sentiu fome. De noite, debilitada, apressou o carcereiro.

Caldo

Os camarões mortos, dentro da empada, receberam elogios. Nadavam no mar calmo de uma praia deserta. Tinham a mesma idade, tamanho e cor. Não eram irmãos. Resultados de diferentes cópulas, nasceram próximos e fizeram amizade. Brincavam de dar caldo quando puxaram a tarrafa. Tinham nomes completos. Os pais de ambos, bem-humorados, escolheram a dedo. Ouviam frases contraditórias. Uma pedia paciência e a outra não. Dizia que era pra ontem, que a vida era curta e que podiam morrer amanhã. Foram juntos pra costa desconhecida. De mãos dadas, atravessaram a corrente. Curtiram e voltaram. Foram pegos de surpresa numa tarde da estação em andamento. Fervidos, descascados e introduzidos na massa. Tinha frango na coxa, carne no pastel e linguiça no pão. Salada de alface.

Helicóptero

Transaram durante o filme. Preliminares no começo, penetrações no meio e deleite nos créditos. Aventura banal. Um herói, sem super poderes, que parecia ter. Violência. Passaram batidos pela explosão. Perderam a morte da filha e a queda do muro. Nessa hora, enroscados, agiam e reagiam. Sussurravam elogios. Quando o mocinho foi torturado, Angélica tava algemada. Também se contorcia. Foi libertada na cena do helicóptero. Trocaram de posição. Charles, quieto e de olhos fechados, não ouviu o tiroteio. Ficaram de pé e deitaram de novo. Sincronizados com a película, terminaram juntos. Não viram nada.

Mentira

Descalço com a vara na mão, parou na beira do rio. Anzol, molinete e isca. Acharam estranho. Frequentadores de longa data, que jamais presenciaram tal atitude, acompanharam pra entender. Não tinha peixe e tinha uma placa pra avisar. Forrou o chão, tirou a bermuda e, de sunga, manteve a camiseta. Jogou a linha na água. Um banhista não aguentou e foi lá. Discorreu sobre a ausência de animais aquáticos. Depois de ouvir, disse que não tinha problema. Que era mentira e que, apesar do que pensavam, pegaria um linguado. Voltou pra barraca, reproduziu o diálogo e sentou na cadeira. Ficou atento. Jorge, tranquilo, sentiu a pressão e puxou. Ciro suou frio.

Almofada

Levantou pra fritar os ovos. Na televisão, qualquer coisa. O primeiro, assim que quebrou, jogou na frigideira. O segundo também. Não houve um terceiro. Fogão, óleo e sal. Tirou rápido pra comer mole. O arroz, da geladeira, pro micro-ondas. Na sala, almofada embaixo do prato. Só usou garfo. Esqueceu da água e voltou pra cozinha. Da cumbuca, cubos pro copo. Queria gelada. Banho frio. Dormiu e acordou. De estômago vazio, pão e leite. Louça.

Casaco

Ficou mais velha de noite. De casaco na calçada, longe do meio fio, viu a dupla. Bonés pra trás. Foi imediato. Pensou na profusão de sensações às quais seriam submetidos ao longo do porvir. Nas vidas que teriam. Oscilantes. Vão, com certeza, morrer de alguma coisa. De qualquer coisa. Cabeças que mexem com nervos e corações que, exigidos, sofrem danos. Pediu passagem. Diante do sinal, mão no bolso. Olhos vidrados e raciocínio besta. Matemática simples. Menos futuro.

Extremo

Escrevia sem parar. Frase atrás de frase. Entre vírgulas e pontos, histórias. Tragédias, comédias e variações. Personagens principais. Coadjuvantes em determinados locais submetidos às escolhas de cada dia. Aos climas. Na chuva, casacos e capas. Sungas no sol. Tops. Érica, Júnior, Geraldo e Fabiana. Sérgio e Adriana. Deixou claro que seriam usados. Levados ao extremo. Do melhor, com períodos de calmaria, ao intragável. Atualidades, previsões e passado. Tudo na cabeça.

Travessia

Perdeu Alice de vista. O afastamento gradativo, iniciado com a travessia da rua, resultou no desaparecimento completo. Caso andasse pra frente, alcançaria e veria de novo. Não quis. Combinaram que seria assim. Precisavam despistar o conhecido em comum que vinha a passos largos. Mal quisto por ambos, tava de tênis e camiseta lilás. Short preto. Sugeriu que fosse pra longe enquanto simularia o amarrar dos cadarços. Chegou como previsto. Passou apressado, olhou pra placa de trânsito e seguiu na direção dos carros. Perfeito. Nenhum contato visual. Minutos depois, onde escolheram, comeram pastel e beberam refrigerante porque não tinha caldo de cana. Saíram alimentados.

Barulho

Fabiano dorme na rua. Na porta da loja. Coberto com pano velho e sujo, com fome, pede ajuda pra quem passa. Cheira mal em demasia. Dos bueiros, de madrugada, roedores brotam. Convivem. Observa a busca por comida e bebida. Cochilava quando Pedro e Ricardo apareceram bem vestidos e perfumados. Despertou com o movimento. O barulho dos ratos que, assustados, voltaram pro esgoto, foram sucedidos pelos comentários dos pedestres. Compararam o ambiente ao da cidade natal de Bruce Wayne. O mendigo, que ouviu, gritou. Confirmou a grandiosidade da imundície. Na volta, usaram a paralela.

Jardim

Cercado pelo verde do jardim florido, bem de saúde, amanheceu. Amante do lado. Comida em cima do pano e tempo aberto. Transaram de novo. Sem pressa. Escreveu, no coração desenhado na árvore, Diana e Douglas. Passaram o dia deslumbrados. Ninguém viu porque, nas redondezas, não tinha ninguém. Nuvem solitária de formato engraçado. Entre gracejos, carinho. Desdobramentos. Sorriso destravado, beijo encaixado e harmonia. Corriam atrás um do outro. No frio agradável, de tarde da noite, coberta pra dois. Entrelaçados.

Tamanho

Não podia errar em agosto. Chegou nervosa. Comprou bala, passou no banheiro e subiu. No andar de cima, tensa, viu o potencial algoz. Tinha cor, tamanho e fisionomia. Conversava em grupo. Entrou na sala e, a tempo, finalizou os preparativos. Deu a hora. Já de cara, fez diferente do que deveria ter feito. Pequeno deslize. Curto e grosso, mandou parar. Mostrou o certo de má vontade. O crescimento da insegurança, diretamente proporcional à aproximação da parte mais difícil, levou Tânia ao desespero. Vacilou feio. Veio Mário. Chamou de idiota, burra e imbecil. Tola e toupeira. Em outra época, mais tranquilo, toleraria.

Fileira

Depois da morte, foram pro enterro. Fecharam a caixa de madeira. Botaram no buraco, esperaram um pouco e tacaram areia por cima. Amigos e familiares, tristes, acompanharam. Foi de tarde, com sol e céu azul. O filho chegou atrasado. Tarde da noite. Cemitério fechado. Inconformado, pulou o muro e caiu perto da cova de um desconhecido. Ligou a lanterna. Leu, numa das lápides, o nome do pai. Coincidência. Continuou até que, na segunda fileira, achou o túmulo da mãe. Deixou o bilhete embaixo das flores. Pedia desculpas pela ausência.

Calçada

O niterói se ofereceu. De porta aberta, na frente de Otávio. Vazio. O rapaz, que tinha acabado de chegar, não quis pegar. Passou a noite em claro. Ciente de que é mais um que pensa o que ninguém mais pensa, concluiu, no íntimo, que Raíssa é o mundo. Que a vida, no fim, é o que acaba acontecendo. Sequência de possibilidades concretizadas. Viu, na calçada oposta, esperança. Gozo, riso e choro. O que presta. Com muita vontade, mijou na rua mesmo. Escondido. Condenou a atitude. Acredita que isso, de fato, prejudica o meio ambiente. Abotoou as calças e foi pro ponto. Esperou e esperou. Entrou no guadalupe.

Acordo

Sandra fez confusão. Chamou vaidade de amor próprio. Egoísmo de orgulho e afeição, ainda pulsante, de história. A cabeça não tava boa. Hélio chorou. Tentou impedir, apelou e recuou. Ele, que superou porres, distúrbios e espécies assexuadas de traição, prosseguiu firme, fiel ao acordo que tinham. Insistiu pra que não quebrasse a palavra. Ficou de cama. Indisposto, desiludido e só. Mais magro. Doeu porque pensou que era fora do comum, que seria pra sempre e que havia sinceridade nas declarações que ouvia. Foi ingênuo. Achou que a reciprocidade e cumplicidade prometidas seriam exercidas. Que, sendo verdadeiro, não acabaria. É igual aos outros. Quer que reparem na vida que leva. No café que toma, na quantidade de açúcar e na temperatura da água. No jeito que corta laranja. Alguém preocupado com a demora. Com eventuais espirros e topadas. Agora tá melhor. Ganhou peso e, de dia, conheceu Flávia. Flores novas.

Éter

O frango, o porco, o peixe e o boi, organizados, trancaram a porta. Fizeram o cachorro de refém. O homem arrombou. A ave e o suíno, atentos, agiram rápido. Um pulou na cabeça e o outro passou um pano com éter no nariz do invasor. Coube ao escamoso amarrar Alex. O bovino, paciente, esperou que acordasse. Deu um tapa na cara e explicou. Mandou o animal de estimação parar de latir. Disse que, pra quem não é comida, a vida é fácil. Cortaram os braços e botaram na brasa. Jogaram sal grosso. Cheios de fome, terminaram de esquartejar e assaram todas as peças. A tainha comeu a bunda.

Estrago

Pisou no cocô humano. Entrou no carro e, de imediato, repreendeu o carona. Achou que tinha soltado gases pelo ânus com as janelas fechadas. A acusação foi refutada. Pressionados pelo forte odor, elencaram possibilidades. Olhou embaixo do pé direito, comemorou a ausência de fezes e conferiu a sola do esquerdo. Tava ali. Na embreagem e no estofado. Saíram do automóvel. Tirou o grosso e voltou em casa pra buscar produtos de limpeza. Começou pelo tênis. Escovou o pedal e perfumou o interior do veículo. Não foi suficiente. Como precisavam ir, encararam. Pensou no autor. Em como estaria pra, numa evacuada, causar tanto estrago. Pegaram engarrafamento. Mais de três horas. Dirigiu atordoado. O amigo, com a camisa por cima do nariz, estilo ninja, tentou dormir. Chegaram na merda.

Reforço

Virou bicho quando, na sala de injeções, foi agarrado pelas patas. Mostrou os dentes. Reagiu mal à aproximação da seringa. Dócil, ficou agressivo. Partiu pro ataque. Arranhou, gritou e se debateu. Xingou todo mundo. A equipe médica, responsável pela vacinação do animal, pediu reforço. Mãos na cabeça e no peito. Controle total. Enfiou a agulha até o talo, empurrou o êmbolo e acompanhou a inserção gradual do líquido teoricamente benéfico. Terminaram o trabalho. Trocaram cumprimentos e ordenaram a entrada do próximo. Foi embora em silêncio.

Violeta

Viu, no arco-íris que apareceu de tarde, uma cor a mais. Eram oito. As de praxe e ela. Diferente, inesperada. À direita da violeta. Coçou os olhos pra abrir de novo. Continuava lá, nítida e inédita. Caiu bem. Combinou tanto que, de cara, apaixonou. Passou a achar o antigo insosso. Queria que fosse assim desde sempre. Novidade doida, surgida do nada. Deu o brilho que faltava. Que precisava. Andava descolorido, apagado. Parecia morto. Foi, providencialmente, recriado.

Pilastra

O morcego, perseguido pela gaivota, entrou na caverna. Parou atrás da pilastra. O pássaro pousou. Não viu o mamífero, esperou um pouco e foi embora com raiva. A potencial vítima, satisfeita pelo sucesso da fuga, deitou no colchonete. Precisava dormir. Não sonhou e, quando acordou, espreguiçou. Comeu duas torradas, meio mamão e bebeu um copo de leite. Saiu atento. Passou pelas cabras, vacas e cavalos. Saudou o coelho. Percebeu que o cachorro, machucado, latia baixo. Ofereceu ajuda. Ouviu o relato, diagnosticou e fez um curativo. Deu de cara com o bicho da noite anterior. Capturado, voou de carona até a cabana da ave mãe. Ficou com medo. Negou acusações e pediu misericórdia. Não tinha roubado a galinha.

Palavra

Marina, melhor que Maria e Mariana, chamou a atenção de Mário. Descia as escadas rumo ao térreo. Em prol da construção de um relacionamento afetivo entre ambos, o rapaz interrompeu o deslocamento. Pediu a palavra. Apresentou a si próprio, justificou a aproximação e acompanhou a reação. A menina foi simpática. Conversaram sobre particularidades e demonstraram interesse nas histórias que ouviam. O jovem então, educadamente, pediu um beijo na boca. Obteve a concessão e foi em frente. Acrescentaram abraços, fungadas e carinhos diversos. Só afastaram as cabeças por necessidade fisiológica. Deram as mãos.

Conta

Ninguém. Ninguém tem carinho por mim. Quer saber de mim. Se importa com o fato de eu estar vivo. Ninguém me procura. Torce por mim ou prestigia minha existência. Ninguém reflete sobre mim. Ninguém lembra de mim. Ninguém se interessa por nada relativo a mim. Ninguém me ajuda. Ninguém vê o que faço. Ninguém tá aí pro que penso, pro meu jeito ou pro que tá no meu prato. Ninguém me acompanha. Ninguém diz nada pra mim. Tô só. Isolado. Num tormento desmedido. No breu mais escuro. A fim de morrer por minha conta, não enxergo ninguém. Ninguém que se incomode. Quem lamente ou quem chore. Não há preocupação. Quem faça questão. De verdade, ninguém.

Perfume

Pra sair com o outro, botou a calcinha mais sexy. Bem pequena. Lingerie rosa, enfiada na bunda. Ganhou no aniversário de casamento. Dez anos depois de dizer que sim. Usou o perfume guardado, a blusa decotada e a saia preferida do marido. Uma curta, colorida, adquirida na viagem que fizeram pra espairecer. Voltaram de mãos dadas no carro. Juras de amor eterno. O amante comeu a esposa de tudo que é jeito. Com preliminares, força e requintes de crueldade na ótica do homem traído. Perdeu o controle quando descobriu.

Prato

Gosta de chuchu porque ajuda a comer camarão. O crustáceo, sozinho, dá coceira, náusea e inchaço na garganta. Quando misturado ao alimento mal quisto até a descoberta, é inofensivo. São inseparáveis pra Régis. Num dia de sábado, à noite, viu a janta da mãe. Arroz com os dois. Deu água na boca. A dele, ovo frito, tava boa, mas cresceu o olho na alheia. Pediu pra provar. Dona Ana, preocupada, negou. Disse que não tinha necessidade e que não arcaria com as consequências. O filho insistiu. Tanto que, pra que parasse, deixou. Deglutiu colheres de sopa. Nenhuma reação adversa. Surpreso, montou um prato exclusivo. Ficou tão satisfeito que passou a elogiar o vegetal.

Tijolo

Na frente, só via verde. Fumaça verde. Carros e ônibus. Asfalto verde. O líquido, vermelho, era verde. No céu verde, lua verde. Água do mar. Pintou o quadro com a tinta azul. Verde sobre verde. Pele e cabelo, verdes. Casa de tijolo verde. Camisa verde. Chega de verde. Ficou puto com o verde. Acordava e era verde. Odiou o verde. Passou o tempo. Só tinha o verde. Fez as pazes. Passeio no parque. Olhos abertos. Ainda verde.

Biscoito

Ninguém subiu na árvore pra salvar o bicho. Era preto. Se fosse branco, eu ia, disse o jovem de casaco verde. A moça do lado fez coro. Dois coroas e uma criança ficaram quietos. Na cidade, cheia de supersticiosos, colecionavam pés de coelho. Batiam na madeira. No caso do socorro ao felino, tinham medo de que, por falta de sorte, quebrasse um galho. O gato miava. Cheio de fome e sede, queria descer. Um forasteiro de boa índole, ignorante em relação às crenças locais, ousou bancar o herói. Foi obstruído pela massa. Deixou passar. De madrugada, com um amigo e uma escada gigante, voltou ao parque. O animal entendeu. Usou os degraus, bebeu água e comeu o biscoito que trouxeram.

Guidão

Voltava pra casa de bicicleta. Confiante, apertou o ritmo e convenceu a si próprio a fazer um teste. Quando chegasse na curva, embalado, tentaria imitar campeões da motovelocidade. Era pra direita. Entortaria o guidão, aproximaria o joelho do asfasto e retornaria à posição inicial. Passou do ponto e levou um tombaço. Caiu no chão desprotegido. Quem viu, achou engraçado. Levantou doído, envergonhado e todo ralado. Tinha um aniversário pra ir de tarde. Tava sol e o evento, informal, seria ao ar livre. Levaria sunga pra entrar na piscina. Não dava mais. Na gaveta de remédios, achou mercúrio, merthiolate e própolis. Encarou a ardência como punição merecida e foi pra festa de calça jeans.

Inércia

Comprou um telescópio pra ver o astro. Abriu a janela, posicionou o equipamento e puxou a cadeira pra sentar. Olhou pro céu e achou normal. Lua, nuvens e planetas a postos. A estrela que esperava, batizada de Lara, chegaria lá pra meia noite. Eram oito ainda. Deixou tudo pronto. Estudou um pouco mais e, às onze, iniciou a vigília. Viria da direita pra esquerda e ficaria estática entre Marte e Júpiter. Depois sairia da inércia e aceleraria rumo ao destino que tinha. Assim foi. Uma da manhã. Observador atento ao passeio do corpo celeste. Na fase imóvel, encantado, fingiu que era uma exibição só pra ele. Não esquece. Acompanhou o percurso inteiro. Até o instante em que Lara, muito longe, sumiu do campo de visão.

Palha

O panda macho, com frio, corria na neve. Vinha em velocidade de cruzeiro quando avistou o homem abominável. Cumprimentou de longe e deu meia volta. No iglu, pra esposa, disse que tava tudo bem. Foi pro outro lado no dia seguinte. De óculos escuros e chapéu de palha, casaco e meia grossa, contornou o lago congelado. Saudou pinguins e ursos. Pra foca, contou a história da véspera. Bolaram um plano. Forjariam uma pesca de salmão e deixariam os peixes esquecidos no balde. Na hora que, diante da oportunidade, viesse roubar os animais ricos em ômega 3, seria envolvido pela tarrafa e pendurado de cabeça pra baixo. Combinaram com os de carne rosada. Não usariam anzóis.

Simples

Talita aposta que, antes de separar, já tinha beijado a atual. Supõe que exista. Ninguém disse nada. Era atencioso, preocupado e apaixonado. Agora, pós-mudança repentina, é indiferente. Esqueceu rápido demais. Não procura e, quando atende, é evasivo. Nega convites outrora irrecusáveis. A explicação é simples. Outra mulher. De namorada nova, despreza a antiga. A ex, magoada, imagina. Sofre de pensar. Lembra dos bons tempos e nutre esperanças. De acordo com a tese que defende, Guilherme esconde. Conserva o relacionamento na esfera privada. Não divulga.

Oferta

Pro coração, tá claro. É o cérebro que atrapalha. Faz conta, projeta e explica. Reprime o instinto. De acordo com o vermelho que bombeia, não tem o que pensar. Basta recusar a oferta. Ficaria feliz, orgulhoso e daria um jeito. Os miolos divergem. Consideram a atitude intempestiva e inapropriada. Dizem que, apesar de nociva a curto prazo, a aceitação dos termos é redentora a longo. Deu ouvido pros dois. Convencido por indícios pró-negativa, pendeu pro lado do alojado no peito. Coincidências animadoras pareciam escancarar o caminho certo. O intelecto, na dele, teve calma. Esperou a euforia passar. Condenou a supervalorização do acaso, levantou questões e recomendou juízo. Lavou as mãos. Na esperança de desempatar, consultou os demais componentes do organismo. Silêncio. Pele e ossos retraídos. Intestino quieto, bexiga calada e baço mudo.

Período

Na sentença, cabia gasto ou gastado. Particípios passados de um verbo só. Problema grave. Escreveu com gasto. Leu, releu e apagou. Reescreveu com gastado. Das duas, uma. Vinha bem até empacar. Na história, de adultos ao longo do período retratado, descrevia locais e narrava ocorrências. Parou pra urinar. Bebeu água e, quando voltou, quase esquecida, regressou ao dilema. Não queria ser injusta com expressão nenhuma. Pensou mais. Cogitou a utilização de sinônimos. Mesmo consumido, que cairia bem, dispensou. Adiou a decisão. Tomou outra: à palavra derrotada, daria vez na próxima. Deixou ambas de sobreaviso.

Massa

Grudados, foram ao prato. Blocos de macarrão. Comeu pra não jogar fora. Ofereceu pro amigo que não quis, abusou do queijo ralado e, após repetecos, havia extinguido a quantidade produzida. Fez errado. Achou que, antes de cozinhar, precisava lavar a massa crua. Tentou consertar. Ficou transtornado. Descrente da necessidade de existir, amargurado, investiu no autoflagelo. À intempérie culinária, agregou insatisfações. Relacionamentos, trabalho, família e amigos. Distrações que não deveria ter. Taxou a si próprio como feio, burro e imprestável. De bom, nada. Nenhum orgulho. Não se matou porque é contra o suicídio. Diz que é perigoso. Na semana seguinte, no mercado, comprou pronto.

Número

Partida em dois, perdeu o valor. Caiu no chão e pisaram. Não repararam porque, entre folhas, parecia outra. Ricardo que viu. De longe, sentado no banco, olhou pra árvore. Metades compatíveis. Mesma cor, número e animal. Na tentativa de recuperar, usou materiais de escritório. Pegou a parte de baixo, tratou e grudou na de cima. Ficou decepcionado porque não deu certo. Depois de um tempo, por algum motivo, separavam de novo. Jogou no lixo. Constituíram, durante longo período de coesão, um inteiro relevante. Desataram por acidente.

Cidade

Não queria morrer naquela hora. Tava animada. Tinha saído, beijado um cara e, na manhã seguinte, seria a festa. Teve medo quando atravessou a rua. A cidade, vazia, ameaçava. Foi ao ponto, pegou o ônibus e chegou bem. Precisava dormir pra acordar cedo. Agitada, deitou. Cochilos raros. Barulho na cabeça. Desligou o despertador e levantou adiantada. No evento, extasiada, foi às lágrimas. Depois acabou. Virou passado também. Diante do que é apresentado, fraqueja. Não faz questão. Agora, de volta ao normal, empacotaria sem problemas.

Voz

Impelido à existência, apareceu em prantos. Não fazia idéia. Do planeta, reino ou espécie. Da hora e do clima. Sujeito ao que fosse, desnorteado, brotou no ecossistema. Não sabia do tamanho e do peso. Nem da cor, sexo ou origem. Podia ser invertebrado, planta ou pássaro. Depois viu que era humano. Entendeu que pensava e, por isso, conferiu superioridade. Descobriu de onde era e conheceu a família. Tom de voz, cabelo e quantidade de dedos. Desenho do rosto. O tipo sanguíneo, AB, e hormônios predominantes. Não virou gente boa. De propriedades inatas, carrega um pacote. Deprecia o do próximo.

Chave

Adilson passou de fase. Matou o gorila de três metros, pegou a chave e entrou na caverna. Ganhou pontos. A próxima, mais difícil, leva pra última. Uma vida só. Duas moedas, uma pistola e um lança-chamas. Começou com a roupa do corpo. Abateu a cabra de três patas e, como recompensa, tomou posse do estilingue. Atirou no morcego de três quilos. Novo prêmio. Chegou a ter metralhadoras, granadas e armadura. Perdeu no mestre da quinta. O pato, de três bicos, cuspia fogo, ácido e vidro moído. Teve que subir na escada com a bigorna de prata. Do topo, mirou e largou. Deserto, selva, cidade, campo e céu. Tempo ameno. Chuva torrencial na neve. Luva e gorro, no sol quente, contra os bárbaros de três cabeças. Bebeu água na nascente do lago. Pra superar a enguia de três olhos, usou estratégia. Saltos, cambalhotas e ataques repentinos. O chefe final, ainda distante, fez Catarina de refém. Cavou buracos pra plantar o mal. Separou armas, acionou capangas e preparou armadilhas. Tem três estômagos.

Tática

Se afasta quando vem gente. No carnaval, quer, sóbrio, conquistar alguém sóbrio. Flagrou a observadora. Enquanto olhava, lembrava do que era. Tá velha. Parecia triste de ver que, com o tempo, envelheceriam. Circunstâncias. É você e você mesmo. Não se engane. Como na mágica, música. Não quer outra. Tática de roçar. Abismado, reparou. Ficou pra baixo. Em algum momento, todas percebem. Conhecem bem. O beijo insosso, forçado, que não tem graça. Devia ter esquecido. Pra equilibrar, afrouxa o passo. Chapéu no chão. Assunto. Tantas qualidades que, de repente, encantamento. Esperança com apreensão.

Córrego

Os caubóis que escrevem cartas, no geral, são românticos. Terminam com data, hora e autoria. Têm inspirações. A de Arlindo acorda cedo e passa distraída pelo córrego. Não sabe que o boiadeiro, sentado à margem, é o responsável. Entrega às escondidas. Roberto é extrovertido. Dá as caras, canta e faz desenhos. De corações que se completam. Sidnei, do contra, fala de outro assunto. É um dos poucos. Os demais, fiéis à fama, exprimem afeto nos papéis que distribuem. Acreditam que há ternura. Destinatários de correspondências, Alex e Cátia ficaram tão emocionados que investigaram. Descobriram, agradeceram e, interessados, compraram botas e chapéus. Na beira do rio, participam. Transmitem mensagens de amor.

Método

Substituiu cálculos aleatórios por uma barreira abstrata. Ao invés de sobrecarregar, desocupa. Dá no mesmo. Profusão ou nada, via de regra, viram descanso. Começa quando precisa. Força a instauração do breu. Pela hiperatividade, é mais frenético. A rejeição é agressiva. Às vezes aplica o método antigo. Sucessão de contas com resultado incorreto. O novo, de diferente, tem o meio. Usa um campo de força. Rechaça idéias em formação pra impedir que ganhem profundidade.

Virada

Com paus nas mãos, brincaram de espada. Organizaram um campeonato. Antonio e Alice, no primeiro confronto, bateram Felipe e Reginaldo. Descobriram pontos fracos e fizeram incisões imaginárias. Foi fácil. No segundo, equilíbrio. Denis e Ramon começaram na frente. Abriram vantagem com simulações de corte de pescoço e perfuração estomacal. Pensaram que tava ganho, ficaram desatentos e tomaram a virada. Assistiram à final. Roni e Guilherme, na defensiva, esperaram. Tinham ensaiado o contra ataque. Na hora, erraram e caíram de lado. Médicos naquele dia, acionados pelo árbitro, examinaram as orelhas. Optaram pela amputação.

Submarino

O peixe espada, despido, foi até o baú. Nado simples, pra frente. Desconhece crawl, costas e borboleta. Com a barbatana, coletou o carregamento. Chegou na gruta, desembrulhou e consumiu. Denise, que rastejava despercebida, pediu um pouco. Negado. Voltou lá e, pra pegar mais coisa, levou um saco de batata. Encheu do que queria. Atum, brinquedos e uma vara. Ignorou o molinete, catou minhoca e botou no anzol. Pescou tilápia. Os carrinhos e bonecas, deu pros filhotes. Comeu o enlatado. Não sabia que o principal ainda tava guardado. Eraldo achou. Três colares, um brinco de prata e uma pulseira de ouro. Diamantes e esmeraldas. Trocou num submarino de duas portas. Da caixa grande, agora vazia no fundo do mar, tirou também o mapa que não incluiu na negociação. Lembrou do desenho animado e partiu sem medo. Durante a saga, no estilo pirata submerso, encontrou algo parecido com Atlântida.

Crescimento

Por falta de grana, come mal. Divide com a filha. Café da manhã, almoço e janta. Nada de biscoito, sorvete ou refrigerante. Faz a conta. Calcula a relação entre o pouco que recebe e o gasto mínimo necessário. Não repetem pratos e não há sobremesa. Têm fome até dormir. Acorda, faz café e economiza no açúcar. À tarde, pequenas porções. De noite também é difícil. Fatia o pão, esquenta e põe na mesa. A menina, em fase de crescimento, precisa de mais.

Saudação

Só Heloísa queria mais. Achou intenso e divertido. De acordo com a impressão que teve, infiel à realidade, foi recíproco. Passou rápido. Beijos, abraços e sorrisos. Despedida promissora. Declarações e chamegos. Combinaram de, no dia seguinte, marcar pro dia seguinte. Acordou, lembrou, ficou feliz e mandou uma saudação matinal. Armando recebeu. Também tinha gostado, mas não tanto. Não fazia o tipo dele. Respondeu com poucas palavras, simulou afinidade e torceu pra que desistisse logo. Não atendeu o telefone. Heloísa entendeu. Com a esperança reduzida, escreveu de novo. Tentou agradar. Pra estender a conversa, fez perguntas. Armando manteve o estilo. Simpatia mínima e nenhuma brecha.

Castelo

Mudou de idéia. O que faria, chato e previsível, deixou de lado. Concebeu novos personagens e aventuras. Diana seria prisioneira no castelo do mal e Davi compraria remédios. No enredo atual, ficam na espreita. Ana, que esperaria João, agora sai pra encontrar a prima. Falam sobre encantos e percalços. Volta feliz e, morta, dorme cedo. As sobrinhas ganharam destaque. No contexto reformulado, focado no tio, aparecem mais. Melissa saiu da história. Entraria com estilo na festa. Roupa nova, maquiagem bem feita e cabelo macio. Seria bajulada por Evandro e dançaria com Pedro.

Alvo

O soco na cara, desferido de propósito, derrubou Reginaldo. Ficou mal. Achou que estavam bem. Na despedida, cordial, pregou respeito. Disse que eram amigos. Pra machucar mais, calculou a distância. Ajeitou o corpo, preparou e apontou. O alvo, região central da face, foi atingido com sucesso. Caiu no chão. Levantou possesso e, por instinto, quase revidou. Desistiu. Refletiu e lamentou. Viu, na covardia, descompasso. A raiva virou decepção que virou desprezo. Em silêncio, doído, absorveu o golpe. Passou a borracha e parou de escrever.

Amizade

Mergulharia na cabeça e rearranjaria miolos. Puxaria pro lado que aprova. Diante da impossibilidade de aplicação do artifício, argumenta indefinidamente. Cansa e chateia. Explica, repete e comenta. Desqualifica. Condena opiniões diametralmente opostas e, pra convencer do contrário, elabora respostas. Procura brechas e explora escorregadas. Quer um filho pra ensinar, desde cedo, como deve ser. Passo a passo. Elogia quando agem de acordo com o que defende. Em vez de ficar na amizade, avalia. Aponta caminhos, julga ato por ato e condena ou aprova. A tal criança, caso passe a existir, será orientada.

Fundo

Imagina pronto. Letras em palavras separadas por espaços. Tantas linhas, acentos e pingos. Bloco de texto bem acabado. Alinhado à esquerda e sem rasuras. Fonte elegante. No fundo branco, sinais gráficos em sequência lógica. Contexto e conteúdo. Idealiza um produto que, consumido, suscite deleite. Serviço completo. Viúvas eliminadas, redundâncias extintas e erros corrigidos. Não teria indentações. Seria antigaguejo e fluido de cima a baixo. Até o último ponto, seguiria em velocidade de cruzeiro. Encorpado e agradável. Tanto que, só de olhar, ficaria feliz.

Escola

Chega, senta, não pergunta nada e começa. Incomoda. No início, solidários e inocentes, deixaram à vontade. São treinos pra eventuais apresentações. Diários e repetitivos. Flautista na escola, virou ator. Pratica diálogos e expressões. Voz alta, cantoria e gritos. Não é que não gostem. Tão cansados. Acostumado à conivência, é insensível ao desprazer que proporciona. Tá no automático. Quer, ao máximo, aproveitar o tempo no espaço. Os importunados discutem. Uns defendem a abertura do jogo. Interromperiam de imediato a continuidade do comportamento, justificariam a mudança de humor e esclareceriam as saídas pela esquerda. Outros, pela omissão, confabulam. Adilson interpreta.

Consumo

A caixa d’água, vazia, precisava encher. Repetia preces que conhecia. Vibrou quando apareceu alguém pra, finalmente, ligar a bomba. Alívio. O fluxo foi liberado às nove e interrompido às onze. Quase entupiu. Ganhou peso que não queria. Perdeu aos poucos, no decorrer do consumo. Sílvia demora no banho. Evandro é rápido. Filhos e visitas, em proporções distintas, também gastam. Dias depois, alcançou o nível ideal. Volume médio. Nem pouco nem muito. Pra continuar assim, do jeito que gosta, depende dos moradores. Teriam que saber do desejo e fazer por onde. Não percebem. Insensíveis aos anseios do tanque, deixam secar.

Furo

Os sobreviventes, após enterro dos mortos, construíram o barco. Cataram madeira, cipó e pano. Eram nove jovens. Três rapazes e meia dúzia de moças. Ignorantes em relação à náutica, demoraram pra acabar. Botaram na água. O primeiro furo, taparam. Depois não deu. Voltaram pra terra firme. Após insinuações, conclusões e discussões, Beatriz tomou a frente. Mandou Tarcísio arrumar cola. Priscila martelo e Andressa, caixa de papelão. Pediu ajuda pra Renata. Na areia, desenhou atividades e funções. Teria que caber todos, flutuar, ganhar velocidade em razão do vento e possuir mecanismo de imposição de direção. Avelino e Vera, responsáveis pela alimentação do grupo, trouxeram capivaras abatidas. Rejane cozinhou e Tenório lavou a louça. De noite, música ambiente.

Parede

O que faz à noite, no quarto, é normal. Dorme de lado. Rola na cama e perde contato com o travesseiro. Acorda de barriga pra cima. Durante o sono, ao que parece, desliga. Não entende bem. Sonha quando não passa batido. Na última produção da mente em estado de torpor, protagonizada pela colega atraente, deu tudo certo. Falou pouco e começaram. O coito imaginário foi interrompido pela realidade. Assustado, viu as horas. Dava tempo. Tal atividade mental, imprevisível, impressiona Caio. Flor que voa, luva na parede e elefante magro. Tem dia que baba.

Azul

Debaixo de chuva, pulou a poça d’água. Atravessou a rua. Aproveitou a presença da marquise e, desatenta, trocou de camisa. Tirou a molhada e botou a seca. Verde por azul. Olhou ao redor. Surpreendida pela presença do rapaz ao lado, cumprimentou e disfarçou o constrangimento. Esperava o ônibus. Minutos antes, entediado, lamentava. Viu com clareza e achou a cena ótima. Entusiasmado, fingiu naturalidade. Sorriu de volta. Após o compartilhamento de comentários banais relativos às circunstâncias, silêncio e atenção. Veio o coletivo.

Natural

Quando tá bem, sabe que vai ficar mal. E vice-versa. Tranquilo, por exemplo. Perdeu a ilusão da continuidade da sensação. Dali a pouco, tenso, percebe a mudança. Fica feliz e preparado. Certo de que tem fim. Angústia efêmera, euforia passageira e alternância constante. Chora e acha graça. Fases difíceis, de insatisfação completa, antecedem entusiasmo. É natural que saia do controle. Refém da sucessão de transições, navega entre oito e oitenta. Tem gratidão, afeição e agressividade. Questão de tempo.

Romance

Tirou do gancho e dormiu sem ligar. Renan sentiu. Imaginava que, como de hábito, ouviria o som da chamada. Percebeu tarde, quando o sono bateu. Pegou o telefone e discou. Recado claro, cruel. Premeditado. Além de não procurar, se escondeu. Não quis falar. Por desencargo, tentou de novo. Passou a noite ansioso. Surpreso, magoado e triste. Não teve beijo. Nem tchau, nem briga, nem oi. Elencou possibilidades. Traição e cansaço. Desgosto. Descaso e raiva. Não sabia. De manhã, logo cedo, poderia insistir. Mas não. Concluiu que não faz falta pra Isadora. Que aquele amor, cantado e escrito, desapareceu. Que a saudade sumiu e que o romance acabou.

Distância

Tava na cara e, efetivamente, brigaram. Era vez do parceiro e o lixo tava bom. Canastra real, coringa e um oito que cabia antes do nove. Com medo da decisão prestes a ser tomada, inquietou. Não podia falar. A linguagem corporal, somada aos barulhos que produzia, deixou clara a instabilidade. Pressionada e nada convicta, a dupla de José comprou no baralho. Fez errado. Assim que jogou fora, reagiu. Explicou a distância entre o cometido e o que deveria ter sido. Ouviu o que não queria, respondeu à altura e o clima, ruim, não mudou depois da batida. Na contagem, confirmação: pouco ponto acumulado e muito pra pagar. Derrota acachapante. No negativo, optaram pelo abandono precoce do passatempo.

Impulso

O trem, em velocidade constante, foi visto ao longe por Miguel. Tinha perdido a hora. Pra não perder a viagem, precisava pular e cair dentro do vagão. Calculou a relação entre impulso, vento e atrito. Algumas portas estariam abertas. A saída da inércia, presumida pra dali a pouco, seria sucedida por determinados movimentos. Ajeitou o corpo e preparou o salto. Sem dificuldades ou sequelas, obteve sucesso. Viu bancos ocupados e olhos fechados. Passadas casas e paisagens, o ritmo da locomotiva foi reduzido gradativamente pelo maquinista. Até que, de acordo com o previsto, parou na estação. Após embarques e desembarques, retornou à navegação sob trilhos. Miguel, na rua, andava rápido. Abandonou o comboio no tempo certo.

Osso

Não é de ferro. A carne, colada no osso, sofre cortes. O osso quebra. Nervos que passam pela cabeça e coração pelas mãos. Diarreia, limitações e teimosia. Sujeição à panes. Entre sim e não, possibilidades que atormentam. Funciona. Silencia no fim. Esconde o que guarda, absorve e resigna. Quis ser escritor. Leu e escreveu sem que ninguém visse. Quis ser músico. Som no quarto, de porta fechada. Trabalha. Ingere. Fim de semana. Dorme. Acorda. O contentamento, intermitente, acaba em desgosto. Cobrança. Prazo esgotado. Ante à conjuntura, propícia à colapsos, retração. Resistência.

Palácio

A cabra recorreu ao coelho. Ganhou um pouco de pelo. Rabo do cavalo e orelha do porco. As patas, doadas pela vaca, couberam. Depois da boca cedida pelo leão e da genitália pela raposa, faltava o nariz. Pediu pro jacaré. Pra macaca, pro galo e pro peixe. Ninguém tinha. Orientado pelo sapo, foi no palácio. Bateu na porta, recebeu a negativa e voltou pra casa do caranguejo. Triste, comentou com o esquilo que, comovido, sugeriu ver com a girafa. Do lobo, tomou um fora. Elogio da tartaruga. Conseguiu com o elefante. Botou no lugar e, de imediato, começou a cheirar.

Bocejo

Após matar, pediu desculpas. Agiu por instinto. Considerou ameaça quando, a pé e de bota, o menino ultrapassou a cerca. Vinha com um facão pra cortar galhos e uma vara de pescar. Olhou pro hipopótamo. Sentiu medo mas, por ignorância, não cogitou a possibilidade do assassinato. Achou que era um bocejo e seguiu em frente. O animal então saiu da água, correu determinado e atacou. O lagarto viu. Criticou o homicida pela intempestividade. Alertou pro fato de que, com esse tipo de recepção, afastariam as visitas. Falou sobre bom senso e reiterou a necessidade de raciocínio prévio à atitudes do gênero. O mamífero entendeu e, arrependido, prometeu melhorar.

Térreo

Cheirou um pó e foi pra escola trincado. Fez a redação. Releu, virou a folha e, com calma, esperou pra entregar. Pensou na vida. No pai, na mãe e no irmão. Na avó, que mora longe, e nos primos. Desenhou no papel em branco. Trocou de lápis pra colorir. De uma hora pra outra, lembrou da frase e quis mudar. Revirou pra reescrever. Confuso em relação à mensagem, demorou. Trocou o conceito pelo fato. Botou um ponto no fim. A professora, ansiosa pra sair, recolheu apressada. Desceu devagar. Chegou encucado no térreo e pediu a opinião do pessoal.

Diferença

Preta, gorda e feia, fuma maconha. É argentina e macumbeira. Manca e, na política, defende o adversário. Torce pra outro time. É loira, bi e pobre. Prostituta e velha. Tem tatuagem, piercing e cabelo ruim. Gosta de funk e pagode. Ex-presidiária, anã e disforme, tá com aids. É canhota e mora na favela. Usa pochete. Atacada sem mais nem menos, tenta entender. A diferença que faz.

Margem

Eliane não arrisca. O sanduíche é o mesmo e o marido, estúpido, não muda. Prima pelo que tá garantido. Em jogos de pôquer, costuma pedir mesa. Abandona mãos razoáveis, tem receio das boas e desconfia das ótimas. Com as imbatíveis, é o júbilo. Certeza absoluta. Paga pra ver, recolhe fichas e comemora. Só participa quando não vale dinheiro. A covardia, aliada à falta de ambição, estende circunstâncias. Faz tempo que quer respirar novos ares. Ainda planeja. Presa à margem de segurança, evita o perigo. Obstrui o ímpeto.

Solidez

Enxerga com clareza. Consulta datas de validade, notas de rodapé e placas de trânsito. Focaliza e, mesmo à distância, lê. Distingue pessoas e desce escadas. Atravessa a rua. Observa o fluxo pra, consciente, começar a andar. A nitidez propiciada pela eficácia do olhar trouxe benefícios. Discernimento pra tomada de decisões. Cores que pareciam misturadas escancaram solidez. Reflexos que não machucam. Vê, ao longe, fauna e flora. Cidade aos pés. Asfalto. Confere gravidade ao que era despercebido. Atento aos detalhes, meandros e conceitos, persegue o fim. Acende luzes pra sair do escuro.

Loja

O chapéu colorido ficou na cabeça de Flávia. Gostou mais do que do branco. Metade azul, metade amarelo, tava mais caro que os outros. Não comprou. Ficou indecisa e, pra evitar arrependimento, deixou pra resolver depois. Remoeu. Entre as alternativas, adquirir ou não, avaliou prós e contras. Pesou custos e benefícios. Voltou na loja. Provou de novo, chamou a amiga pra ver e pediu pra vendedora deixar separado. Disse que pretendia levar. Em casa, perguntou a opinião de pessoas com as quais convive. Uma falou pra ir em frente. Outra, pra refugar. Refletiu sobre o assunto e, no fim de semana, tomou a decisão.

Boneca

Falou de amor pra impressionar. Citou Rafael, amigo de infância. De quando viviam juntos, brincavam e comiam frutas. Nenhum beijo na boca. No máximo, carinho ingênuo e abraços. No aniversário dela, de onze anos, encheu um saco com bolinha de gude. Entregou entusiasmado e estranhou a reação. Distraída pelos convidados, deixou de lado, perto dos outros. Pegou um papel e escreveu um bilhete. Maria leu, gostou e agradeceu. Disse que, assim que fossem embora, daria atenção. Foi bom porque o menino relaxou. No fim da festa, trocaram a sala pelo quintal. Lembraram dos presentes e de quem tinha dado. Roupa da tia e boneca do pai. Brincos da avó. Jogaram búlica, mata mata e triângulo. Quando deu a hora, tarde da noite, prometeu que voltaria. De manhã cedo.

Poltrona

Cansado do português, virou poliglota. Definiu como meta. Escolheu uma língua pra começar. Traduziu artigos, bulas e manuais. Tirou legenda de filmes e documentários. Aprendeu e pulou pra outra. Quando completou cinco, já mais velho, ficou feliz e resolveu viajar. Despachou a bagagem. Entrou no avião e inclinou a poltrona. Dormiu no trajeto, acordou e conversou em hebraico. Na despedida, sorrisos e saudações. Falou com o taxista sobre o caminho. Elogiou a recepcionista e a camareira. Fechou a porta. No quarto, leu avisos e pediu comida. Pensou no idioma materno e, animado, escreveu.

Couro

Quando, no relógio de Adalberto, o ponteiro maior enfrentou o menor, parou o tempo. Ficou surpreso. Mal orientado pelo mostrador, passou a vida sem cogitar a possibilidade. Até que, num instante, perdeu a paciência e mudou de rumo. Caminhou na direção contrária. Viu a mobília e acessórios estáticos. O cachorro latiu e as pessoas, que antes papeavam, continuaram. Não entendeu porque achou que virariam estátuas. Não é bem assim. Fazia força. As horas, de tão nervosas, tentavam atropelar os segundos. Permaneceu firme. Forte, resistiu por um período que, naquele momento, era incontável. Até a intervenção da pulseira. Reuniu os dois, explicou e mandou refletirem. Disse que os meses, anos e séculos deixariam de passar. Citou semanas e quinzenas. De acordo com a correia de couro, seria presente pra sempre. Pensaram no assunto. Brigaram, calcularam e decidiram. Àquela altura, em que ninguém esperava por nada, fizeram as pazes.

Chapéu

A meia calça, guardada, saiu de moda. Fica perto do macacão. As calcinhas velhas e o vestido de noiva, batido, ocupam a gaveta de baixo. A sandália perdeu o salto. Saias, shorts e tops, deixados de lado, apoiaram o chapéu de palha que, cansado do descaso, incitou a violência. Atacaram roupas novas. Mancharam a blusa e rasgaram o sutiã. Antes da festa, sujaram o casaco. Cortaram os dedos da luva, esconderam os cadarços e venderam os cintos. Queimaram o biquíni. Quando a dona chegou, atrasada, abriu o armário. De cara, viu a camisola molhada e a bota furada. Entrou em desespero. De tão perplexa, custou pra chiar. Tinha que sair. Botou uma jaqueta amarrotada que, pelas costas, chamaram de ultrapassada.

Curva

Os golpes, desferidos por terceiros, mataram Jonas. Defendia Eugênio. Pulou na frente da barra de ferro. Cabeça amassada, fígado magoado e osso quebrado. O colega, assassinado depois, levou um tiro. Coração perfurado. Lutavam porque achavam necessário. Atiraram bombas contra inimigos. Acreditavam que, apesar dos riscos, o esforço era válido. No dia do extermínio, saíram em bando. Sucumbiram ao longo do trajeto. Irmãos, filhos e amigos de infância. O pai, veterano, foi pego na curva. Cabeça decepada. Afiada pelo algoz, a faca percorreu o pescoço. Sangue, pele e pus. Passou pano pra usar de novo.

Time

No dia do jogo, a ser disputado num salão ao ar livre, chovia. Heleno trocou de roupa, calçou tênis e olhou nervoso pela janela. Lamentava e torcia pela estiagem. Se opunha ao cancelamento e, pra evitar, fez contato com o pessoal. A maioria já tinha desistido. Foi mais cedo, levou rodo e pano de chão. Assim que as nuvens pararam de expelir água, trabalhou na secagem do piso. Ficou pronto a tempo. Como ninguém tinha aparecido, ligou de novo. Sete, oito, nove. Faltava um. Chamou Denílson, desconhecido que passava na rua. Negou porque não podia. Sorte que Cláudio, inesperado, deu as caras.

Oposto

Pagou jantar, hospedagem e gasolina. A solicitação de beijo, aceita durante o passeio, decretou o início do romance. Deu flores, café na cama e, no frio, cobriu. Ouviu a calúnia numa conversa qualquer, na presença de amigos. Ao questionamento, feito por acaso, Darci respondeu o oposto da verdade. Não entende o motivo. Pra saber, teria que perguntar. Procurou razões na própria mente. A que considera mais provável, uma pena, pressupõe falta de apreço. Ausência de reflexão e autocrítica. Diante do ato, que contradiz declarações recebidas, pensou na separação. Achou a ideia boa, imaginou o que diria e comunicou. Não concebeu caminhos que levassem à continuidade. O cônjuge, surpreso, pediu explicações.

Mínimo

Em silêncio, convivem. Dividem espaço. Passam perto e, pra não cumprimentar, abaixam a cabeça. Fazem o que vão fazer e vão embora sem dar tchau. Ambiente frio. Ao invés de harmonia ou hostililidade, indiferença. Voltam quietos no dia seguinte. De tanta decepção, preferem não arriscar. Não têm curiosidade. Optam pelo maior distanciamento possível. Quando tá cheio, dão um jeito. Falam o mínimo necessário. Pedem licença, agradecem e pronto. Na fila da água, aguardam mudos. Bebem e voltam aos lugares. Os sons que emitem, por questões particulares, não pressupõem diálogos. Assovios, gritos e suspiros. Tudo impessoal.

Ganso

O marreco, o pato e a cegonha, distantes uns dos outros, sobreviveram. Seguraram firme no que deu. O galo e o ganso, mais cansados, perderam as forças. Morreram próximos. Um largou o toco e outro quebrou o galho. O jacaré, submerso, esperou a queda e comeu crus. Os que restaram, tristes, choraram. Pegaram pedaços e enterraram. A gaivota desceu. Perguntou detalhes do ocorrido e disse que, se desse, teria ajudado. Mentiu feio pro pavão.

Tipo

Faltava tudo, desde o início. Os tubos de sangue, etiquetados, mofavam no armário. Urina e fezes na gaveta. Utensílios na bancada e relógio no pulso. Examinou o primeiro. Tipo A, sem infecções. O de Vítor foi o segundo. Terceiro e quarto, saudáveis, deram pouco trabalho. Prosseguiu apressado. Por motivações clínicas, relacionadas à validade da amostra, jogou o subsequente fora. Depois vieram um jovem, uma doente e um idoso. Preencheu as fichas. Por falta de tempo, parou em Vanderlei. Sobraram alguns. Agnaldo, desinformado, esperou na fila.

Ocorrência

Falou com o namorado da amiga e deixou clara a intenção de transar. O dela, a caminho do quarto, não desconfiava. Chegou e viu. Ambos na cama, pelados. Ele ajoelhado e ela de quatro. Entretidos, não notaram o aparecimento de Plínio. Saiu quieto e chamou Isabel pra ver também. Quando manifestaram a repulsa, Marisa tava de pé, de costas pra Heitor. Interromperam a movimentação e cataram as roupas. Vestiam enquanto, desnorteados, improvisavam explicações. Os traídos, num comum acordo não planejado, mantiveram silêncio. Sem palavras, partiram. Tanto adúlteros quanto ludibriados refletiram sobre a ocorrência. O novo casal, oficializado após dissolução definitiva dos precedentes, durou pouco. Ciúmes em demasia.

Amigo

O que não existia, depois de pronto, seria apresentado. De um modo específico. Pra começar, forçou o cérebro. Idéias ruins, pensamentos distantes e possibilidades. Escolheu uma e insistiu. No rascunho, fez a cabeça. Cabelo branco e brinco de argola. Membros e tronco, desenhados, tomaram corpo. Rasurou o joelho e pintou os pés. Apagou tudo. Desistiu de ser humano. Criou um monstro de olhos azuis e dentes brancos. Sem pêlos. No clima, concebeu e caracterizou o amigo. Um robô engraçado, tímido e alto. Botou pra conversarem no parque. A criatura fantástica, extrovertida, explicava. Teorias complexas sobre matemática e filosofia. Números que, em tese, valiam menos.

Contentamento

Pra evitar saudades, prendeu num abraço. Apertado, sem brecha. Não soltou. Cansou da alegria finita, do tempo aprazível que cede a vez. Quer felicidade contínua. Paz no peito, mente sã e corpo em ordem. Dia após dia. Tanto que, naquele dia, apelou. Concretizou a idéia. Sentiu o momento mágico e, na distração da sensação, capturou. Segurou firme. Cegado pelo lado bom, não vê o aspecto negativo. É que, encarcerado, o contentamento não anda. Não passa pros outros. Pros vizinhos, tristes, sobram lamentações e pesares. Todos desiludidos. Deprimidos e deprimentes.